André de Leones

Li Child of God (1973), o terceiro romance do autor norte-americano Cormac McCarthy (1933-2023). Eis uma paulada de capítulos curtos e violências mil protagonizada por um “filho de Deus como eu e você”: o assassino em série andrajoso e necrofílico Lester Ballard. Que homem. Com a voz de Nelson Gonçalves, cantemos: parafilia, aqui me tens de regresso.

É bastante comum considerar Suttree (1979) — que, aliás, ganhou recentemente uma bela edição da Alfaguara, com tradução de Daniel Galera — como o primeiro grande livro do autor, e acho que é mesmo, nem todo mundo emplaca um The Recognitions (William Gaddis), V. (Thomas Pynchon) ou Seara Vermelha (Dashiel Hammett) logo de cara. Mas The Orchard Keeper (1965), Outer Dark (1968) e esse Child of God trazem bastante coisa à mesa e aos nossos pesadelos mais campestres. Torçamos para que a Alfaguara também publique os supracitados no Brasil. Enquanto isso não acontece, ficam as sugestões para os leitores fluentes em inglês. É fácil encontrar esses livros nas lojas virtuais, o envio é rápido e os preços não estão inamistosos.

Gosto demais do jogo de vozes na primeira parte de Child of God, quando Lester Ballard nos é apresentado por suas próprias ações e pelo que as pessoas das redondezas (estamos no interior, na região montanhosa dos Apalaches do Tennessee) nos contam sobre ele. Filhote de Faulkner como é, McCarthy não introduz essas outras vozes. Elas tomam a página e tornam parte do livro uma “ilusão de múltiplas vozes, um coro fantasma em meio a velhas ruínas”. Não é o caso (nada há no romance que justifique essa leitura), mas gosto de pensar que algumas dessas vozes são das pessoas que Ballard matou e levou para a caverna onde passa a viver em determinado momento.

Aliás, o livro começa com ele perdendo a casa que herdara do pai (“Eles diz que ele nunca foi certo depois que o papai dele se matô”). Depois, encontra uma cabana e vive nela até perdê-la para o fogo. A caverna é o lar seguinte. A destituição é tão progressiva e implacável quanto a matança que o personagem promove. Casais namorando nos carros; defuntas para uso privado.

Há coisas horríveis e, em meio às coisas horríveis, acontecem maluquices que me fizeram rir trincando os dentes, como a passagem em que Ballard, depois de assassinar um desses casais, leva o corpo da mulher para a cabana. Ele compra roupas para ela. Ele posiciona o corpo assim ou assado, sai da cabana e fica olhando a defunta pela janela. E, claro, ele viola o cadáver sempre que pode.

Então, certa noite invernal, a cabana se incendeia. Ballard se salva, mas o corpo fica lá dentro: “Ele passou a maior parte da manhã vasculhando as ruínas e ficou preto até os joelhos com cinzas de madeira e suas mãos estavam pretas e seu rosto manchado de preto onde ele se coçava aturdido. Ele não encontrou sequer um osso. Era como se ela nunca tivesse estado ali. Por fim, ele desistiu. Ele limpou a neve do restante de suas provisões e preparou dois sanduíches de mortadela e se agachou comendo num lugar tépido entre as cinzas, digitais pretas no pão branco, olhos escuros e enormes e vazios”.

Quando voltarmos para as cavernas (não vai demorar muito), levarei Child of God comigo.

Filho de Deus

Crônicas e Outras Histórias

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Matéria - Crônicas

Joaquim raptou Ana e fugiu para um local remoto, o tal do Grotão do Paraíso. Apesar da repressão da época, ninguém apareceu para capturá-los e fazer o casamento na marra, sob mira de trabucos.

As palavras Grotão e Paraíso parecem excludentes. No entanto, nesse caso, elas não só se complementam, mas ainda se reforçam. Para se alcançar o local, é preciso ter vivência com a geografia convulsiva da região e gostar de aventuras. Primeiro, escala-se um monte rochoso, depois desce por íngremes penhascos, em ziguezague, atravessa uma gruta estreita e inundada e, finalmente, chega-se a uma caverna que esmoreceu, há milhares de anos. Ali se desgarra uma planície fértil e aprazível, cortada ao meio por um riacho azul, rodeada de paredões.

Superando empecilhos, – feito um casal de guaxes amarrando os primeiros fios de capim para tecer um ninho pendurado e seguro–, Joaquim e Ana, em alguns anos, construíram um paraíso de subsistência. Para comprar as coisas que o sítio não dava, 
descobriram uma cata de pequenos diamantes que, de vez em quando, o casal levava umas pedras ao povoado e trocava por sal, querosene, pólvora, ferramentas e até cachaça. Ali, era onde o rio do tempo empoçava e eles nadavam infinitamente.

Nasceu a primeira filha, deram-lhe o nome de Maria José, filha de Joaquim e Ana, em homenagem aos pais de Jesus, José e Maria. Nasceu a segunda e atribuíram-lhe também o nome de Maria: Maria Clara. E mais uma Maria, Maria Salomé, chegou por 
derradeiro.

As meninas cresceram alegres e felizes, sem conhecer as complexidades da vida social. O pai nunca deixou faltar-lhes segurança, e a mãe ensinou-lhes leitura e caligrafia, no limite dos rudimentos. Pouco saíam do Paraíso. Quando muito, iam com os pais ao povoado, trocar diamantes por utilidades.

Quando as meninas enjoaram das bonecas, e o amor brotou no coração, os pais lhe pediram que não se afobassem. Deus lhes reservaria noivos maravilhosos, vindos numa manhã de domingo, em carruagem de ouro.

- Pai, mas aqui não chega carruagem! – alegavam. 
- Pra Deus nada é impossível. Se não chegar por terra, chega pelo ar.

Um dia, o casal tirava mel à beira de um penhasco. Joaquim pisou numa rocha em falso que rolou com ele sobre Ana. Deixaram as filhas órfãs.

Maria José, a mais velha, assumiu a liderança, papel de pai e mãe das irmãs. O grupo dominava as atividades singelas do sítio. Passada a fase de pânico e luto, a vida retomou seu normal. Todavia, não suportavam mais tanta espera, para que chegassem os propalados noivos.

Um dia, apareceu por lá um moço, meio aturdido, como se tivesse escapado de alguma ribanceira. Elas trataram suas feridas com chás, unguentos de folhas e óleos de madeira. O rapaz sarou. Bonito e agradável, além de trabalhador. As três, pretendentes. Todas achavam que, por alguma razão, tinham primazia. Não conseguiam chegar a um denominador, ainda que incomum, para definir qual delas celebraria o enlace.

A irmã do meio pensou em matar as outras duas e ficar com o moço, só para ela. Chegou até a preparar um bolo de araruta com veneno de rato. O cão Tupã viu facilidades em abocanhar o bolo e morreu repuxando. Deu tempo de Maria Clara repensar, munir-se de remorsos e arrepender-se eficazmente da ímpia ideia.

A mais velha, Maria José, talvez movida pelo instinto materno adquirido, aventou evaporar o rapaz e, com isso, recompor a harmonia familiar, até que Deus lhes apresentasse uma proposta melhor. Pensou em montar um frágil balanço de cipó de imbé perto de um abismo e convidá-lo a balançar-se. Numas duas ou três vezes de vaivém, o balanço romperia e assim recuperava-se a situação anterior.

Mas antes que o plano fosse aplicado, Maria Salomé, a mais nova, teve uma ideia salomênica. Elas, em conjunto, desposariam o rapaz. E ele seria fiel a todas. Uma por semana, conforme o cronograma estabelecido.

A ideia do empreendimento amoroso foi a que vingou. Não que fosse a solução ideal, mas a possível para a ocasião. A vida seguiu seu curso. E ninguém foi expulso do paraíso.

As três Marias

CRÔNICAS E OUTRAS HISTÓRIAS

Observar pássaros acalma, alivia o estresse e até ajuda no combate à depressão, li em algum lugar. Ser por eles observado também. Como assim ser por eles observado? Isso mesmo. Sinto-me continuamente observada por bem-te-vis, por um ou dois em especial.Quase todas as manhãs, quando ia me exercitar na academia e me movia por 30 minutos na esteira imóvel, diante de uma grande janela, um bem-te-vi – dos muitos que pousam nas paineiras reais, também chamadas de Paneira-de-Manila (pesquiso o nome agora), não sei se para bicar seus coquinhos vermelhos (não me detive tanto nessa observação) – pousava em uma grade de outra janela e me encarava.Juro que ele me secava com seus miúdos olhos de passarinho. Ficava ali por vários minutos. Às vezes levantava voo e batia asas para algum lugar além do alcance de minha visão, mas voltava alguns segundos depois, retomando a vigília. Ora, mas como sei que se tratava do mesmo bem-te-vi e não de outro, afinal eram tantos e tão iguais? Só sei que sei ou quero acreditar que sei.O fato é que me acostumei a sua companhia diária, uma presença que tornava menos torturantes e tediosos os 30 minutos de caminhada e corrida. O que teria em mim de atrativo para despertar a curiosidade daquele passarinho? – eu pensava. O que ele, por sua vez, pensaria a respeito daquela humana estranha que não só não tem a capacidade de voar, como anda sem sair do lugar e usa fones de ouvido para ignorar o seu canto lindo?Pensar no que pensam de nós as aves do mundo é bom porque nos faz nos recordar de nossos absurdos e estranhezas.Pois, para minha decepção, notei a ausência do meu passarinho habitué nos últimos dias. O bem-te-vi já não vinha me ver. Sabe-se lá por qual motivo, sumiu, levantando com ele todos os outros de sua espécie que faziam festa nas palmeiras.Para consolo, resta jardim e na vizinhança de minha casa um bom estoque de bem-te-vis. E há um outro em particular, frequentador assíduo de meu restaurante gratuito para gatos (os meus e os da vizinhança), pombos e demais pássaros. Lá pelo fim da tarde, ele aparece, religiosamente, para pegar o que lhe cabe da ração dos gatos.Ignorando o grande perigo que corre – Netuno, meu gato marinho, é um caçador audaz e implacável –, o bem-te-vi pousa sobre uma das cordas do varal na varanda, encara-me com seus olhos miudinhos (pensará ele que sou eu a ameaça?), solta um canto estridente e mais longo, quase uma espécie de grito, espera alguns segundos e dá um rasante em um dos potes de ração colocados sobre a bancada de uma velha pia. Captura um naco com seu biquinho e voa de volta para o fio. Às vezes repete a operação por duas ou três vezes e talvez por estar com o papinho já cheio, voa de volta para não sei onde.Decerto têm razão os que dizem que observar pássaros mitiga a tristeza da vida e do mundo, pois naquelas manhãs em que é bem difícil levantar da cama, é a algazarra das maritacas no jacarandá mimoso em frente à sacada do meu quarto que me lembra que acordar vale a pena, ou as penas. Algumas delas chegam bem perto e até pousam sobre o fio da empresa de telefonia, observando-me com ares de peraltice.Infelizmente, não posso dizer que me espiam as grandes araras azuis que também ouço sobre o telhado da casa ou sobre na grimpa de um dos pinheirinhos diante da porta principal. Não se aproximam o suficiente para que eu possa acreditar que também me acompanham. Só sei que passam alguns minutos ali, exuberantes, ruidosas, e logo partem para novos telhados e árvores quem sabe também para observar outros sortudos humanos que as observam, estranhos.

Observar pássaros que nos observam

Ela queria muito ter um homem para chamar de seu, a posse já denunciada no verbo e no pronome. Mas como os pedidos podem ser atendidos em demasia, talvez por erro de cálculo da sorte, o homem com o qual se envolveu por puro acaso, sobre quem quase nada sabia além dos galanteios e declarações da fase inicial de apaixonamento, era muito mais possessivo do que ela.

Sufocava com ligações e chamadas de vídeo a todo momento, e ai dela se não atendesse de imediato. As terríveis suspeitas de traição resultavam em longas e cansativas queixas e discussões. Foi ficando exausta e até assustada, diante de gritos e até ameaças. Decidiu terminar para ter paz.

Mas, de novo, o excesso, que não favoreceu a tão sonhada tranquilidade interior. Era sossego demais sem aquele tormento de admiração quase servil, sem os presentes constantes por nada que não fosse ganhar sua atenção agradecida, notou que se ressentia até por ter ficado livre das DRs. Um vazio insuportável que a fez querer de volta o que deixou partir, mas aí, cadê comentário ou curtida nos posts em rede social quando desbloqueou o digníssimo? Nenhum sinal.

Armou estratégia que julgou infalível. Caprichou na escolha da foto de uma cesta decorada com laços, flores e corações, tudo bem vermelho, cor da paixão. Um romantismo que de tão ostensivo ultrapassava todos os arroubos de Dia dos Namorados. Ao postar, fez legenda de quem ficou comovida com o gesto generoso, mas não mencionou a origem do presente. Aguardou ansiosa. Encarou um silêncio aflitivo, que se estendeu pelo dia e pela noite, quando tornou impossível dormir.

Os pensamentos eram inimigos atacando por todos os lados, juízes implacáveis condenando suas atitudes, sua existência, as escolhas infelizes, impondo vereditos cruéis de abandono, solidão e tristeza.

Era ela que não sabia conduzir a relação de forma saudável. Por que não podia ter mais paciência com o monitoramento sufocante? Por que se cansar da pessoa só porque era invasiva, chegava e não ia embora mais, já ocupava com as próprias roupas e objetos pessoais grande parte do que era para ser o recanto de intimidade dela no apartamento pequeno conquistado a duras penas? Ah, tivesse sido mais compreensiva, maleável, se cedesse e não reclamasse...

Mal tinha amanhecido e ela, amarrotada pela insônia e pelo assédio mental implacável, viu mensagem da mãe. Tão cedo, o que seria? A mãe tinha visto a imagem da tal cesta tão enfeitada e vermelha, e ficou muito preocupada.

- Come não, filha. Joga fora logo. Tem muita notícia de gente que recebe comida assim, bolo, chocolate, e morre envenenada.

Não desfez o equívoco, sustentou a mentira, disse que jogaria tudo fora sim, agradeceu o alerta sobre os riscos. Nem bem respondeu, outra mensagem, agora da tia, com a mesma apreensão. Explicação idêntica e, enfim, algumas risadas.

O ridículo daquele mal-entendido explicitou que era cercada de muito amor, sim, que amor são laços de muitas cores e possibilidades, nem sempre vermelhos, nem sempre românticos. Mas amor também. Sobretudo, constatou com alívio, são laços. Jamais um nó que não se pode desatar. E vermelho de paixão e morte, é também de pulsação e vida.

Vários tons de vermelho

Parecia cenário de guerra. Na calçada, blocos inteiros de telhas que o vento havia arrancado da cobertura da garagem do prédio durante o temporal. Na esquina, parte de uma árvore tombou sobre os fios da rede elétrica, que quase tocaram o chão, interditando a passagem de carros e pedestres.Esse foi o saldo da chuva que caiu no último domingo. Lembro-me de que, antes de sair de casa, olhei a previsão do tempo no celular para ter certeza de que estaria abrigada quando a tempestade viesse. Estacionei o carro longe de árvores ou marquises, para evitar o risco de desabamento e acidentes.Hoje, tenho medo da chuva. É um sentimento estranho, porque nascida na década de 1970 e tendo acompanhado a vida na cidade de lá para cá, a chuva era sinônimo de conforto e boas lembranças. Talvez o leitor não compreenda, mas é que naquela época costumava “invernar” em Goiânia.O termo vinha do fato de que, durante os meses de novembro e dezembro, até a primeira quinzena de janeiro, caía uma chuva fina e incessante na capital, que baixava a temperatura e deixava o céu nublado. Dizíamos, então, que “invernava”, e nos preparávamos para passar o Natal e o ano-novo em clima úmido e ameno.A chuva tinha cheiro de terra molhada e manga madura na minha infância. Como morávamos no Setor Sul, em novembro começávamos a procurar as mangueiras carregadas do bairro e fazíamos até concurso para ver quem “catava” mais frutas — porque goianiense raiz não pega nada, ele cata.Os pingos finos que caíam do céu tinham gosto de bolinho de chuva, que minha avó fritava para os netos e servia com café quentinho, nas tardes cinzentas das férias de dezembro. Tinham gosto de tender e peru, que minha mãe preparava para a ceia natalina.A chuva era sinônimo de bagunça, alegria e partilha. Minha avó não comemorava o aniversário em casa. Décadas antes de eu nascer, decidiu que celebraria a data em alguma instituição filantrópica e que, em vez de ganhar presentes, queria que as pessoas doassem para a entidade escolhida.Cresci dentro de uma Kombi velha, dirigida por um motorista apelidado de Gordinho — que, ironicamente, era magro como um varapau, e cujo nome de batismo nunca soube. Ele percorria com minha avó Mariquinha e com a então diretora do Educandário Afrânio de Azevedo, dona Dirce, os lugares onde buscávamos os donativos.Descíamos da Kombi de sombrinha e voltávamos com sacos de comida, engradados de refrigerante e brinquedos tão ensopados quanto nós. Depois, fazíamos um mutirão para embalar os presentes, e o desafio era impedir que a chuva derretesse os papéis de embrulho.Na juventude, a chuva passou a ter gosto de cerveja e cheiro de churrasco. Ela nos acompanhava nas chácaras que a turma alugava para passar o réveillon. Era sinônimo de risadas, partidas de Imagem e Ação e truco, nas tardes e noites em que ficávamos empoleirados dentro de casa porque não era possível ir para a piscina.Também era lembrança de romance, como na vez em que, depois de brigar com um ex-namorado, ele passou na minha casa para fazermos as pazes. Colocou Kiss the Rain no toca-CD do carro e perguntou se eu já havia beijado na chuva. Respondi que não. Ele me puxou para fora e experimentamos um beijo molhado e apaixonado.Hoje não inverna mais. A água que cai do céu se mistura violentamente ao “rio de asfalto e gente / entorna pelas ladeiras / entope o meio-fio”. Como na letra de Clube da Esquina nº 2, de Lô Borges — que partiu esta semana —, ela nos faz oscilar entre os gases lacrimogêneos e os sonhos que não envelhecem.E lá se vai mais um dia.