As ruas, ainda vazias, quando saí para comprar pães. Apesar da hora, um mormaço de sauna seca pairava no ar, prenúncio de um dia de calorão. No interior do estabelecimento, só umas três pessoas comprando e outras, na ala do café da manhã, sentadinhas, comendo confeites e olhando para o celular. A quantidade de funcionários, reduzida para menos da metade. Sempre que saio, cedinho, tenho por hábito não levar carteira nem celular. Cisma de que os meliantes, nessas horas, costumam mais agir. Minha mulher até já me preveniu: é melhor levar alguma coisa para agradar o bandido, numa eventualidade, do que o irritar, por não ter nada, e levar um tiro ou uma facada de graça. Ao sair da padaria, por prevenção, olhei para a direita e para a esquerda. Não vi ninguém. A não ser um ônibus coletivo, que passava vazio, com o motorista abrindo a boca. Quase vencendo o quarteirão, apalpei os bolsos e assustei-me. Havia perdido o cartão de crédito, em algum lugar. Seria no caixa? Deixei-o caído no chão da loja ou na calçada? Ou algum mão leve o teria me surrupiado, sorrateiramente? O que era pouco provável, pois esse tipo de furto costuma acontecer onde há multidão apinhada. Instintivamente, empreendi caminhada de volta, fazendo uma varredura visual. Nessa busca, vi, pela parte superior do arco da visão, lá no meio da quadra, um maltrapilho, saco nas costas e o cabelo afro com longos canudos que pareciam sapecados. Usava uma perna mais curta e por isso mancava. As pessoas desse extrato social costumam caminhar com lentidão, com o propósito de chegar a lugar nenhum. Aquele, ao contrário, caminhava rápido, e com afinco, como se não apenas quisesse chegar a um lugar, mas alcançar alguém em retirada. Perdi o interesse em vasculhar o chão e fixei-me no sujeito que caminhava em rota de colisão comigo. Digo rota de colisão, pelo seguinte, quando o enxerguei, caminhávamos do mesmo lado da faixa de piso tátil direcional, orientador de deficientes visuais. Saltei para o outro lado e ele, também. Saltei de volta e ele fez o mesmo movimento. Quem olhasse concluiria que ensaiávamos um balé, uma dança do cisne, com alguns movimentos complexos naquele pas de deux casual. Ele, ao mancar, mudando de faixa, fazia uma ginga jocosa e eu, pelo medo e a pouca destreza nas pernas, andei tropeçado nas bolinhas do relevo de aviso de mudança de nível da faixa. Ele olhava em mim e eu olhava nele, como se houvesse um ímã, que, de tão forte, não nos apartasse. Aquele sujeito, com certeza, vinha para me assaltar. Nenhum morador de rua andaria depressa, sem um motivo justo, ainda mais àquela hora, quando costumam estar ressonando sob as marquises. E o justo motivo era me assaltar. Eu me lembrei de minha mulher e me arrependi de não ter seguido seus conselhos. O assaltante encostaria a faca em minha barriga, ou apontaria um revólver na minha cara para exigir dinheiro e celular. E eu não levava nada disso. Até o cartão de crédito havia perdido. Tinha apenas o pacote de pães. O que, certamente, era muito pouco para um assaltante. Pão era só ele pedir na porta. Logo, ganharia tanto que dava até para distribuir com os pombos em alvoroço. Pensei em fugir correndo. Porém, com minhas pernas trôpegas, de velho, não seria páreo para o perseguidor, mesmo sendo coxo. Julguei-me preconceituoso. Por ele ser preto e pobre, por seus ascendentes terem sofrido séculos de escravização, eu o estava discriminando, concluindo, desde logo, tratar-se de um marginal violento. Nem essa tentativa de me redimir aliviou meu pânico. Nosso balé continuou numa coreografia cada vez mais frenética, num vaivém, pra lá e prá cá, sobre a faixa dos cegos, à medida que nos aproximávamos. Quando, enfim, nos encontramos, ele me apontou alguma coisa. No pânico, não vi o que era. Gritei socorro, como quem estivesse no meio de um incêndio. Ele me disse, um pouco ofegante: – Se aquieta, véi. Achei seu cartão!