Maria Lúcia Felix Bufáiçal

Cinquenta anos atrás quase não existia carnaval de rua em Goiânia. Há registros de alguns movimentos heroicos nesse sentido, mas a adesão era tímida e descontínua. Ao contrário de hoje, em que muitos blocos vão sambar nas ruas.

Carnaval existia principalmente nos clubes, como o Jockey, o mais concorrido e o mais animado. Eram quatro noites e duas matinês com muita gente no salão. Algumas pessoas se fantasiavam, mas não havia grande brilho ou disputa como nos bailes do Rio, que as revistas e a TV mostravam, com fantasias super luxuosas e que às vezes levavam um ano inteiro para serem confeccionadas.

Nos carnavais dos clubes aqui da cidade, o mais comum eram blocos com até 20 ou 30 foliões usando fantasias raramente luxuosas demais. Criavam-se fantasias simples, como de havaianas, ciganas, piratas, coisas assim. Pouco pano, algum brilho e muita animação.

As orquestras tocavam quase sempre as mesmas músicas que quase todo mundo sabia de cor, tipo “Se você fosse sincera, ôôôô, Aurora”, “Olha a cabeleira do Zezé, será que ele é, será que ele é” (politicamente incorretíssima atualmente por fazer referência debochada a gays). E outras, que às vezes mudavam o ritmo no salão, por serem mais lentas, como “Quanto riso, ó, quanta alegria, mais de mil palhaços no salão”. Só sei que meus amigos e eu geralmente íamos todas as noites e tardes para o carnaval, muito para estar no meio da festa, mas também para brincar e pular.

Em alguns bailes aconteciam brigas e confusões, mas não eram muito comuns. O dia amanhecia e ainda havia gente nos clubes, gente indo tomar caldos em algum bar ou restaurante que estivesse funcionando e com as portas abertas nas madrugadas.

O carnaval como tema já inspirou muitos músicos e poetas, por exemplo, Noel Rosa, com seu “Um pierrô apaixonado, que vivia só cantando, por causa de uma colombina acabou chorando, acabou chorando”. O pierrô, o arlequim e a colombina eram alguns personagens dessas músicas e poemas, por causa da história deles:

Colombina era uma moça muito bonita, por quem o Pierrot (que era empregado do pai dela) vivia apaixonadissimo. Mas a Colombina gostava do Arlequim que, ao contrário do tímido Pierrot, era festeiro, alegre e divertido (e segundo alguns autores da Comedia del’Arte, um tanto devasso também). Em consequência disso, o Pierrot é sempre caracterizado com roupas de cores pálidas e com uma lágrima escorrendo na face, retrato da tristeza de um amor infeliz e não correspondido, enquanto o Arlequim usa as cores mais alegres do mundo.

Tirando o aspecto religioso cristão de ser o princípio da Quaresma, o dia depois do carnaval também já inspirou muitos artistas, como símbolo de fim de um sonho. Na Marcha da Quarta-feira de Cinzas, Vinicius de Moraes diz:

“Acabou nosso carnaval/ Ninguém ouve cantar canções/ Ninguém passa mais brincando feliz/ E nos corações saudades e cinzas/ foi o que restou”.

E Chico Buarque: “Carnaval, desengano, a quarta-feira/ sempre desce o pano”.

Um feliz final de carnaval para os que brincam e para os que aproveitam o feriado para dscansar! Axé!

Lembranças de carnaval

Crônicas e Outras Histórias

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Matéria - Crônicas

Jorge Amado, em seus romances, volta e meia trazia algum personagem árabe ou descendente, sempre com bastante afeto e graça. Retratava essas pessoas de coração bom, adaptáveis e gratas ao Brasil, país que escolheram para viver. O árabe se entrosou tanto ao restante dos brasileiros que sua gastronomia, seus costumes, seus comércios são indistinguíveis dos nossos - seus filhos e filhas se casam com os brasileiros de outras origens, sua comida passa a ser parte da nossa.Os exemplos de personagens árabes nos livros de Jorge Amado são muitos, desde os mais conhecidos, como o Nacib de Gabriela Cravo e Canela, até Jamil Bichara, Raduan Murad e muitos outros, em diferentes romances de sua autoria.A presença árabe em Portugal e aqui no Brasil é tema muito vasto, e não sei quantos volumes seriam necessários para dar conta do entrelaçamento dessas duas culturas, a portuguesa e a árabe. Basta dizer que desde a dominação dos mouros na Península Ibérica até os dias de hoje, esses dois povos continuam a unir seu sangue e seu suor: as influências sociais e econômicas dos árabes em nosso país não caberiam neste espaço.Meu tio Afonso (Felix de Sousa) morou em Beirute durante três anos, como adido comercial junto à embaixada brasileira, com a missão de promover as nossas exportações. Durante o tempo em que viveu lá, não deixou de viajar pra todo lado no Oriente Médio, e de escrever poemas, cada um mais lindo do que o outro, sobre o que via e sentia. Difícil escolher apenas um ou dois para transcrever. São muitos. Há várias cartas em forma de poemas, uma em especial dedicada à minha tia Aída (Felix de Sousa) em que ele lembra seu convívio na infância com árabes: “E assim, bem vê, é como se eu estivesse em casa... A terra é boa, pois se na Bíblia é chamada de terra do leite e do mel... E peço a todos que não se preocupem com guerras e terrorismo por esses lados que aqui a paz me cerca por todos os lados. O árabe que se fala é o mesmo que jorrava das janelas de minha infância, em Catalão, em Pires do Rio...”Ao mercador de tapetes em Teerã, que “só por minha cara, concedeu-me o crédito de 875 dólares”, ele agradece com um poema, quando lhe envia o cheque da quantia que ficara faltando: “Mal entrei em casa e fui desenrolando/ o tapete na sala e foi como se a meus olhos/ se abrisse um jardim, desses de fadas...E se emaranha /um fio em outro/ e em outras cores/a cor avança/ e para e deixa/ o esboço ou o ovo/de uma figura/ que de si mesma/ nasce e enrodilha-se/ e volta em busca/do seu reflexo/ou sombra ou forma/ definitiva”...Quando visitou a cidade natal de Gibran Khalil Gibran, escreveu um lindo poema, do qual transcrevo: “Voz poderosa a tua, e ergueu-se dos silêncios de teu/ coração, e espalha-se pelos espaços da terra/ A tua voz, do coração da terra tem ela a força magnética/ e tem do céu o eco de imemorial chamado...”Chamou de Inscrições Andarilhas vários poemas curtos, de um só verso, que escrevia à medida que visitava diferentes lugares no Oriente Médio:“Na estrada de DamascoNum raio desçasE abras ao verbo dos verbosNossas cabeças.No Cume da Montanha de BaruqSobre a montanhaOnde os rebanhos conversam com o frioÀ maneira de DeusOnde o sol tem a sua fonteExistem granjas cheias de doçurasPara o homem que segue em sua paz”.Para Afonso Felix de Sousa, que seguiu em sua paz, trabalhando e escrevendo, hoje a vida de nossos irmãos árabes em guerra traria muita tristeza. Talvez então dissesse, como em Vale dos Reis:“Pisemos com cuidadoQue o chão está plantadode mortos”.Saravá.

Os árabes. Dois escritores brasileiros

Daniela havia acabado de pedir para ir embora. Estava preocupada com Benício. Ele havia ficado na casa do avô. Sabíamos que não comeria. Mas isso não era problema. O problema era a intuição de mãe.

Estávamos com um casal de amigos. Daniela insistia em ir. Foi quando meu celular tocou. Era a esposa do meu sogro. Já havia tido provas da assertividade da intuição da minha mulher. Mas, com esse nível de precisão, jamais.

Passei o telefone, sem atendê-lo. Ela recuou. Pediu que eu atendesse. Não tive outra alternativa. A esposa do meu sogro tentou ser natural. Perguntou se estávamos a caminho. Respondi com outra pergunta: “Aconteceu alguma coisa?” Daniela esfregava a mão pelo pescoço. A madrasta esforçou-se para me acalmar. Disse que havia ocorrido um pequeno acidente doméstico com meu sogro, e que minha cunhada iria levá-lo ao pronto-socorro. Indaguei se havia acontecido algo com Benício. Madu negou. E quanto ao avô? Minha mulher perguntava do filho e do pai. O pescoço dela era o de um peru.

Meu sogro estava bem. Mas um dos dedos da mão havia sido navalhado pela lâmina afiada de uma tesoura só aparentemente vagabunda.

Ouvi um burburinho ao fundo da ligação. Depois, a voz de Benício se aproximou do telefone. Madu passou o aparelho para ele.

— O que houve, filho? Você machucou o vovô?

— Papai, o vovô cortou o dedo com a tesoura, e a titia vai levar ele no médico.

Senti que podia repetir para a mãe dele o que acabara de ouvir. Mas, em vez de tranquilizá-la, minha atitude a preocupou ainda mais. Daniela montou — e descreveu — a cena: Benício havia pegado uma tesoura sem que ninguém visse. Ao ser flagrado pelo avô, recusou-se a entregar o objeto. Na ânsia de proteger o neto da lâmina, acabou ferido.

Entre nós, chamávamos Benício de “nosso pequeno Manoel de Barros”. Ao menos até então, ele se interessava muito mais por bichos, natureza e miudezas do que por tesouras, facas ou qualquer outro objeto que colocasse sua integridade ou a de alguém em risco.

Madu ainda estava na linha, conversando com Benício, com o marido e com a filha. Disse a ela que estávamos a caminho e desliguei. Partimos às pressas.

Meu coração descompassou no trajeto, confesso. Benício não poderia ter pegado uma tesoura sorrateiramente. Também não poderia ter se recusado a devolvê-la ao avô. Muito menos tê-lo machucado, mesmo que sem intenção. “Benício não é esse tipo de criança. Ele é daqueles que achava que os passarinhos/ são pessoas mais importantes/do que aviões./ Porque os passarinhos/ vêm dos inícios do mundo./ E os aviões são acessórios.” Literato que sou, insistia em Manoel de Barros como uma espécie de refúgio para manter-me calmo.

Chegamos. Ansiosos por reencontrar nosso filho e por esclarecimentos. Madu não soube dar detalhes, mas Benício estava bem. Vovô estava no pronto-socorro, e minha cunhada mandava notícias: dois cortes no dedo médio, com dois pontos em cada um deles.

Puxei Benício de canto para tentar entender o que havia acontecido.

— Papai — ele começou. — O vovô Ru se machucou com a tesoura. Eu falei pra ele tomar cuidado, só que ele não tomou.

Contive o riso.

— Mas foi você quem cortou o dedo do vovô?

— Não, papai! Foi a tesoura.

O acidente

Carlos Drummond de Andrade, em seus belíssimos poemas, explorava a profundidade dos sentimentos, o desamparo do homem, a solidão e a dor da existência, com a poesia rica em metáforas, imagens e experimentações formais. Já como cronista, sua linguagem era mais acessível, com reflexões sobre o cotidiano e a sociedade, mais próxima do leitor comum. E eu o lia religiosamente no tempo em que morei no Rio e Drummond escrevia crônicas para o Jornal do Brasil.Com meu tio Afonso (Felix de Sousa), deu-se a mesma coisa, o que certamente se pode atribuir aos gêneros literários em si, e não aos dois poetas. A crônica, que ele explorou principalmente ao tempo em que viveu em Brasília, na década de 1960, com seu nome hoje constando nas antologias dos melhores cronistas da cidade em seus primórdios, nos mostra um escritor divertido e engraçado, atributos que passam longe de seus poemas, densos e muitas vezes tristes. Todas as suas crônicas têm humor. Um humor que ri de si mesmo na maior parte do tempo.Assim é que em Irmãs, uma entre muitas outras, ele conta de um sábado em que se encontrava sozinho em seu apartamento, em Brasília – sua mulher e filhos tinham viajado de férias para o Rio – e se preparava, deliciado, para ler um livro que acabara de receber. E diz: “Ali, novinho em folha, ainda rescendendo a tinta, doce convite à segunda melhor coisa que se pode fazer na cama, já que a primeira (tirar um cochilo) assim sozinho era impraticável, o Tutameia do mestre Guimarães Rosa. Ávido e velho degustador das fatias de prosa de nosso rapsodo máximo, voltei, depois de empanturrado por uma lasanha em restaurante próximo de casa, famélico de sua linguagem milionária. Em trajes menores, livro à mão, o corpo espichado sobre a cama, devia ter o ar de quem, livre da algazarra dos meninos e dos invencíveis problemazinhos de ordem doméstica, está com a alma pronta para o ingresso no paraíso”.Mas nesse preciso momento o telefone toca e ele se levanta para atender. A pessoa se identifica como uma prima, de Petrópolis, freira. E ela explica que estava em Brasília e gostaria muito de encontrá-lo. Todo seu plano de uma tarde no paraíso cai por terra e ele vai se encontrar com a prima, de quem absolutamente não se lembrava. Porém, como até já fora visitar incontáveis parentes radicados na cidade serrana do Rio, sente que não pode fugir.Ao chegar ao ponto de encontro, se depara não com uma mas com quatro freiras, que me aguardavam, solenes e exatas, em hábito roxo e enorme rosário preso ao pescoço.A prima, que ele absolutamente não reconhece, nem “esquadrinhando os escaninhos da memória”, o apresenta às outras três irmãs, uma das quais italiana de Sorrento.E dispara:– Tem o que fazer hoje, primo? Claro que não, um sábado. Estamos achando Brasília uma coisa e gostaríamos de ir ver de perto o Palácio da Alvorada.– Veramente tudo è molto bello, remata a italiana.E lá vai Afonso, dirigindo seu Fusca, com uma freira na frente e três atrás, do Palácio para a Catedral, da Catedral para a Torre de Televisão, o Itamarati, o Santuário Dom Bosco, o Asilo São Vicente de Paula.“E lá se vai a tarde. Meu Tutameia dando sopa na menina de cabeceira, e lá se vai a tarde.– Aquilo que você mostrou é o Santuário Dom Bosco, não é, primo? E a Ermida Dom Bosco? Queríamos tanto ver a Ermida Dom Bosco.– Che bello!E minha verdadeira vontade, logo imobilizada por 20 séculos de preconceitos cristãos inoculados no espírito, é propor-lhes uma boate, ou um banho noturno na piscina do Cota Mil.Mas lá vou eu, pedalando meu Fusca, pelas horas ternas do fim da tarde, em direção à Ermida Dom Bosco, em Taguatinga. Hei de assistir a duas ou três missas nas igrejas que forem sendo lembradas pelas companheiras de passeio. E ao fim estarei cansado, já incapaz de ler com o fervor devido, uma só página do mestre Rosa”.Aí está o grande poeta, leve e bem-humorado, a relatar o terrível aborrecimento de não poder ler o que queria na hora que escolheu.Saravá.

Poetas e cronistas

Em princípio, a proposta é irrefutável. Um salto ainda maior na expectativa de vida, que vem aumentando nas últimas décadas, com perspectiva de chegar até os 150 anos de idade. Não só viver mais, mas com qualidade, livre dos desgastes, dores, limitações e perdas que permeiam a velhice, graças aos avanços tecnológicos.

Uma ideia tentadora, até porque a premissa é de uma evolução na sabedoria desses humanos longevos, no sentido de usufruir sem depredar, de experimentar prazer e reforçar laços na intimidade, fazendo dessa possibilidade não uma restrição ao acesso de outros às mesmas oportunidades, mas, ao contrário, expandindo ao coletivo os reflexos positivos das conquistas individuais.

Como nos versos de Légende des Siécles (Lenda dos Séculos), de Victor Hugo.

“Boooz era um bom senhor e fiel parente;/ Generoso, embora econômico;/ as mulheres o olhavam mais do que a um jovem,/ Se o jovem é belo, o velho é grande./ O velho que retorna à fonte primeira,/ Entra em dias eternos e sai dos dias inconstantes;/ Vê-se a chama nos olhos dos jovens,/ Nos olhos do velho vê-se a luz.”

A citação é feita pelo filósofo francês Luc Ferry no livro A Vida Feliz (Vozes, 2023), no qual nos apresenta ao que define como espiritualidade laica, um racionalismo crítico e não dogmático, uma segunda idade do humanismo.

Ferry aponta que, “ao contrário do que ocorre nas ideologias da felicidade, o cuidado de si não é mais aqui um cuidado de si narcísico que visaria de forma banal seu bem-estar pessoal, mas um cuidado de ‘perfectibilidade para o outro’ e de harmonização de si mesmo com aqueles que amamos ou poderíamos amar”. Nesse contexto entra o projeto transumanista de aumentar a longevidade humana recorrendo às biotecnologias.

“... o transumanismo visa de fato, ao retardar e até ao inverter certos processos de envelhecimento, permitir que os humanos permaneçam jovens e em boa saúde por mais tempo possível. O objetivo último seria, para começar, nos fazer viver em bom estado 130, 140, e mesmo 150 anos. De um ponto de vista filosófico, tratar-se ia de conseguir reconciliar enfim juventude e velhice, de desmentir (...) o famoso adágio ‘Se a juventude soubesse, se a velhice pudesse’.”

Jogo no time dos otimistas e abracei com entusiasmo a tese que aposta no melhor da espécie, em sua capacidade de criar e transformar o mundo, de aprender com a história, de usar a seu favor os avanços conquistados a fim de viver mais e melhor. Ciência e tecnologia, com a inteligência artificial exercendo papel de destaque nesse processo, como aliadas, e não inimigas a se temer.

Mas... embora Ferry não só não desconsidere a angústia como inerente à condição humana, mas a reconheça como impulso para movimento e inovação, o patamar elevado de onde se descortinam cenários promissores me parece cada vez mais restrito a nichos de privilegiados, mesmo esses ameaçados pela insanidade.

Excesso de vaidade e ganância, autoafirmação, consumo, busca de soluções fáceis em medicamentos, fake news, ascensão da extrema direita com atrocidades defendidas como bandeira política, devastação, muros, guerras, genocídio, extermínio cruel e covarde transmitido ao vivo sem causar comoção porque não afeta de imediato nosso conforto. Desse ângulo, não se veem motivos que justifiquem prolongar a agonia da espécie.

Mas... existem crianças e sorrisos, solidariedade nas mais perigosas situações, amor incomensurável como o que temos pelos filhos, inteligência, arte, música, poesia e beleza. Transumanismo sim, porque é preciso, mais do que nunca é preciso, acreditar.