Para desgosto do meu cardiologista, sou usuário de escada rolante. Tem nisso um pouco de rebeldia. Presumo que o pessoal bem-intencionado, ao estimular o uso dos degraus contra o sedentarismo, jamais teve o nariz involuntariamente enterrado na axila alheia num ônibus lotado, tampouco passa 10 horas por dia em pé em empregos cujo barulho é inversamente proporcional ao salário. Ao fim de um dia assim, hediondo, qualquer alívio ao corpo envergado deve ser aceito sem parcimônia. Aliás, aí reside a minha impaciência com os gurus fitness que, a cada dica descolada da realidade, transformam o bem-estar em (mais um) privilégio burguês. Mas isso é conversa para outra hora.Só fiz essa confissão de preguiça para legitimar minhas observações etnográficas na escada rolante. Falo com a autoridade de usuário recorrente: ali, enquanto alivio o peso das pernas e da existência, a luta de classes não cessa. O espaço é disputado de forma um tanto selvagem e a vantagem, como desde sempre na história da humanidade, está com os ricos.Formulei essa conclusão depois de observar o comportamento de senhores e senhoras distintos nos shoppings de endinheirados. É lá que dissipo o desconforto térmico em dias de muito calor, ou seja, vou muito mais do que gostaria de admitir em público. Nas escadas rolantes, as pessoas se posicionam ombro a ombro e papeiam na mais absoluta indiferença com quem vem atrás. Quem quiser usar também as pernas, para ganhar tempo, terá de se conter mirando a nuca de algum bacana.Se o mesmo comportamento fosse repetido numa estação de metrô, perto das 18h, a pessoa que eventualmente estivesse interrompendo o fluxo pela esquerda estaria sob risco de homicídio culposo ou até mesmo doloso, por pisoteamento. A pressa parece ser uma maldição exclusiva dos pobres, que precisam sempre correr para que alguém possa andar despreocupadamente nas escadas rolantes dos bairros mais pretensiosos.É muito sintomático que a indiferença ao outro na ocupação do espaço seja um indicativo de privilégio. Eu mesmo, homem, hétero e apressadamente tratado como branco, me refestelo sem qualquer cerimônia nos espaços compartilhados. Me dei conta disso quando, durante uma aula, enquanto escrevia na lousa, uma aluna me pediu licença e ainda se desculpou pelo excesso de quadril. Na verdade, até Gracyanne Barbosa passaria pelo vão entre as carteiras e o quadro se eu não estivesse indecentemente esparramado. Quando estamos em posição de poder, o outro desaparece e o mundo passa a ser nosso. Pergunte a uma mulher, a um preto, a um homossexual, se lhes é permitido circular por um lugar sem medir os próprios movimentos. Seria melhor se todos tivessem cuidado com a presença do outro.De uns tempos para cá, passou a render dividendos eleitorais menosprezar o discurso de quem cobra um mínimo de respeito à própria subjetividade. Essa gente meio amarelada das ideias vê excesso de sensibilidade da parte daqueles que, a rigor, só querem um pingo de visibilidade. Claro que prestar a atenção ao outro cansa, sobretudo aos que herdaram o privilégio de andar despreocupadamente sobre o território coletivo. Nessa posição, fingir a inexistência alheia é muito mais fácil.Talvez na escada rolante, livre dos esforços para carregar nossos corpos, a alma se liberte para perceber todo mundo que está à volta. Seria uma revolução e tanto para tempos em que soa bonito ser boçal.