No estupendo Meus Mortos: um Autorretrato (Record), Diogo Mainardi não chega a inventar uma linguagem que não existia, mas certamente retrata um mundo que deixou de existir. Este mundo é tanto particular — no começo da década, ele perdeu o pai, o irmão e a mãe em questão de meses — quanto universal. O livro, um romance gráfico de não ficção (com fotografias e reproduções pictóricas em vez de desenhos), passeia não só pelas memórias do autor, mas sobretudo por Veneza, ocupando-se das obras de Tiziano (“Deus”) e Rubens (“seu profeta”).Essa reflexão sobre a transitoriedade e a persistência do obscurantismo talvez seja a obra literária brasileira que mais se aproxima das “marginálias” que (des)orientam os volumes do Breviário de São Orfeu, de Miklós Szentkuthy. Não digo que a obra do autor húngaro é uma referência para Mainardi. Digo que, ao ler Meus Mortos e suas digressões sub specie mortis, eu, André, lembrei-me de Szentkuthy.Parafraseando Zéno Bianu em sua introdução a Marginalia on Casanova, em uma era na qual quase todos, “mesmo sob o signo do pior conformismo”, louvam a marginalidade ou se apresentam como vozes “marginais” (ou “periféricas”), Mainardi aparece como “o escritor da margem absoluta” e, eu diria, da margem última — aquela da qual ninguém retorna, se me permitem o desvio semântico.Meus Mortos demonstra como o triunfo artístico não raro caminha em paralelo ao (ou nasce do) fracasso da espécie e da civilização humanas. Mainardi sublinha que a fase mais radical de Tiziano, por exemplo, também decorre das crescentes opressões e brutalidades dos conflitos religiosos que vieram na esteira da Reforma e da Contrarreforma, sepultando a relativa liberdade renascentista: “Em resposta aos energúmenos que, na fase final de sua carreira, atacavam-no pelo aspecto mal-acabado de suas obras, ele assinou (na Anunciação da Igreja de San Salvador): “Titianus fecit fecit” (feito e refeito) a fim de esclarecer, de maneira propositalmente redundante, que aquelas manchas eram deliberadas (e que o quadro estava terminado)”Tiziano, vivendo em um “ambiente cada vez mais repressivo, em que uma certeza doutrinária violentava a outra”, reagiu “tornando sua pincelada cada vez mais livre.” Diante das monstruosidades históricas e cotidianas, há em Meus Mortos um contínuo apelo à restrição do espaço social e virtual como forma de sobrevivência, por um lado, e como estratégia para alcançar ou manter alguma liberdade artística e criativa, por outro. É preciso cultivar e proteger o que ainda nos resta, desde as pessoas que amamos até nossas obsessões, pois vivemos sempre “com os carniceiros celestiais de um lado e a humanidade bestializada do outro, enquanto um cachorro aproveita para lamber o sangue derramado”.Aos meus olhos, persiste no livro uma oscilação entre a consciência da inutilidade de tudo, inclusive da arte, e o apreço pela expressão, incluindo a expressão da inutilidade. Se, parafraseando Mainardi, é incontornável a sensação de que somos indivíduos cinzas, pertencentes a estirpes cinzas que viveram em épocas igualmente cinzas, também me parece incontornável a atualização desse esforço civilizatório intrínseco à produção literária e artística — por mais que o presente e o futuro sejam resolutamente analfabetos.