Diz a Psicologia que eventos angustiantes, principalmente ocorridos na tenra idade, podem causar-nos comportamentos distópicos, alheios ao nosso domínio. Se não houver tratamento, a pessoa vai se esbarrando, por inadequação, vida afora. Em maior ou menor grau, todos têm algum trauma. Se não vem da vida atual, alguns psicanalistas usam a técnica da regressão, para encontrá-lo na dormência do inconsciente de vidas passadas. Penso até que (ninguém leve em conta meu pensamento) se existe o tal de inconsciente coletivo, podemos receber traumas de eventos que não aconteceram conosco, mas com algum antepassado, que nos deixa como herança genética. Dizem, por exemplo, que eu tive um tetravô preguiçoso ao extremo. Alguns parentes dizem que eu puxei dele esse trauma por trabalho.Deixe pra lá. Quero narrar um trauma que me acompanha, de fato. Na verdade, nem sei se é mesmo um trauma ou apenas uma turbulência trivial, dada a sua irrelevância. Logo que nasci, descobriram que eu tinha um dente. Um dente só, mas bem graúdo. Ao sugar o colostro, minha mãe levou um susto. Isso assustou também a parteira, que era minha avó, e uma tia que a auxiliava na operação resgata-bebê.O dente não me permitia sugar o peito. Na verdade, dizem, eu mesmo até que conseguia, o difícil era minha mãe tolerar as dentadas nos mamilos. Em razão disso, passei muita fome. O pessoal não estava preparado para alimentar um bebê de maneira não convencional. Minha tia, que auxiliara no parto, estava com neném de peito. Não estando os dela mais tão doloridos, salvou-me, permitindo que eu os sugasse, com algumas dentadas. Por haver sorvido seu leite, naquela ocasião, ensinaram-me a chamá-la também de mãe. Mãe de Lourdes.A alternativa durou pouco. Logo, estraguei seus mamilos. Minha avó tentou extrair meu dente. Por falta de habilidade e ferramentas, não conseguiu. Mas o dente ficou abalado, inflamou e caiu. Antes de cair, houve um lapso de tempo em que quase morri de inanição.Não me lembro de nada disso, obviamente. Mas sei que o maldito dente de fato existiu. Minha mãe guardou-o embrulhado num retalho de pano, numa caixinha de fósforo, feito uma relíquia, talvez, macabra. Ela ostentava um certo orgulho aperreado de mostrar o dente às visitas. Algumas vinham, apenas, com a finalidade de vê-lo. Houve quem tentasse mistificá-lo, atribuindo-lhe algum poder de cura. Todavia, minha mãe contraditava qualquer investida nesse sentido.Um dia, eu já adulto, minha mãe pegou a velha caixinha de fósforo para me mostrar a relíquia mais uma vez. O dente havia se desmanchado em cinzas. Por coincidência, minha avó morreu no dia seguinte e alguns parentes atribuíram ao dente poderes premonitórios. As cinzas foram jogadas num vaso de petúnias. Coincidência ou não, foi a maior florada.Ainda que de leve, aquele dente deixou-me algum trauma. Tenho um sonho recorrente que me atormenta ao longo da vida. Sonho que estou quase morto de fome e meus dentes foram moídos, feito cristais, sob impacto de um martelo. Há algumas variantes. Às vezes, no sonho, meus dentes derreteram e estou com a boca cheia de um caldo pedregoso e nauseante. Os sonhos são tão realistas que chego a levantar-me, no meio da noite, meio dormindo, para cuspir na pia as inconveniências que estão na boca. Quando acordo, totalmente, sinto alívio.Outra coincidência: os problemas dentários são os que mais me afligem, sempre. Dificilmente, passo um trimestre sem ter uma dor de dente, um tratamento de canal, um dente partido ou uma coroa solta e engolida como se fosse um grumo de angu.Os entreveros dentários causam-me sentimentos angustiantes, associados ao dente primitivo. Chego a pensar que sofro de alguma maldição, mesmo que seja da fadinha do dente. Pior é que, por mais que eu tenha visitado o dentista, é sempre traumático. Nunca consegui me acostumar. Talvez, eu até leve essa angústia, como trauma, para a vida seguinte.