Lituma, por onde anda você? Ainda perambulando pelos Andes ao lado do cabo Tomás, atrás de desaparecidos e enfrentando os dias terríveis de uma cordilheira cheia de violência? E onde estará Flora Tristán, uma das mulheres mais corajosas que já nasceram nessa América do Sul cheia de desafios, machismos e ditaduras? E por falar em ditadores, que repouse no lugar merecido o infame Rafael Trujillo, o homem que mergulhou a República Dominicana no medo, que abusou de crianças e tratou seus oponentes em salas de tortura. Trujillo, do Bode da Festa, fuzilado sem piedade por vítimas de seu sadismo.Todos esses personagens passaram pela escrita de Mario Vargas Llosa, levando-os para a literatura, criando personagens ou emprestando sua leitura àqueles que já existiam, fazendo-os se encontrar na selva amazônica durante o ciclo da borracha ou no bar La Catedral em um Peru que fervia no caldo da desigualdade e do desejo da liberdade. Ele nos carregou para o bordel da Casa Verde, nos mostrou a paixão avassaladora por Tia Júlia, traduzindo sentimentos ousados e gravando-os em nossa imaginação, nos cadernos pouco recatados de Don Rigoberto ou no maquiavelismo delicioso da Menina Má que enlouquece aqueles que não conseguem escapar a sua sedução.Vargas Llosa fez parte da nata do boom da literatura latino-americana, trazendo à luz personagens fascinantes em enredos envolventes, profundos e com uma prosa irretocável. Ganhador do Prêmio Nobel de Literatura na maturidade, desde o primeiro livro, Os Chefes, publicado em 1959, ele mostrava o poder de sua literatura naquele período de ouro da arte de contar histórias em todo o continente. Dividiu os holofotes com outros gigantes de seu tempo, como Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Pablo Neruda, Carlos Fuentes, Miguel Ángel Asturias, Adolfo Bioy Casares, Victoria Ocampo, Alejo Carpentier, Alejandra Pizarnik, Augusto Roa Bastos, Érico Verissimo, Gabriela Mistral e outros mais, ele se destacou ao máximo tanto quanto Juan Rulfo, o autor que podemos chamar de farol para muitos desses gigantes, e Gabriel García Márquez. Com o colombiano, aliás, ele cultivou uma amizade estreita e protagonizou uma briga famosa, na qual nocauteou o autor de Cem Anos de Solidão num local público. O motivo é apenas especulado até hoje, já que ambos levaram os detalhes para o túmulo, mas teria a ver com alguma inconfidência amorosa envolvendo a esposa de Llosa, Patrícia. Durante um período, Llosa e Patrícia passaram por uma crise conjugal e se separaram e houve algum contato dela com Gabo – cuja natureza ninguém conhece, a não ser os diretamente envolvidos – que revoltou o peruano depois que reatou com a esposa. O saldo foi um olho roxo em Gabo, mas Llosa, que já havia escrito o influente ensaio García Márquez – História de um Deicídio, deixou textos elogiosos ao desafeto.Talvez isso mostre um homem cheio de contradições e isso pode ter sido fundamental na genialidade de sua literatura, também recheada de seres contraditórios – e, por isso mesmo, mais interessantes. Ele, que foi de esquerda, guinou para a direita liberal. O defensor da democracia quando disputou a presidência do Peru, hipotecou apoio a candidatos que não apreciam muito os preceitos democráticos. O autor do monumental A Guerra do Fim do Mundo, quando deu voz aos maltrapilhos da Guerra de Canudos, parecia deslumbrar-se com o glamour e a fama. Fã de Sartre e Flaubert, de Euclides da Cunha e Victor Hugo, de Conrad e Orwell, ele foi um intelectual no melhor sentido do termo. Como foi bom ter Mario Vargas Llosa em nosso tempo. Como foi bom ler Pantaleão e as Visitadoras, o Herói Discreto, O Paraíso na Outra Esquina. Obrigado por tanto!