Outro dia, durante a caminhada matinal, vi uma cena que me jogou direto para o passado. Coisas da vida, de repente, à la Marcel Proust, a quem “basta um aroma, um sabor que permanecem como almas sobre as ruínas de tudo”, é o bastante a nos transportar para outro tempo – “e de súbito, a lembrança me apareceu... trazendo o imenso edifício das recordações”.Vi um jovem casal fazendo um piquenique na grama e trocando presentes numa cena em que sobrava carinho. Esse fato me trouxe uma nostalgia boa, daquelas que aquecem o coração e fazem a gente lembrar de como as coisas podem ser simples e, ao mesmo tempo, tão cheias de significado.Em 1974, minha namorada e eu comemoramos seis meses de namoro na beira do Rio Meia Ponte, em um piquenique com pão, uma lata de sardinha e guaraná. O rio ainda não havia sido consumido pela poluição e tinha vista muito agradável. Sentados em uma toalha quadriculada, bem típica da época, ouvimos música num pequeno gravador de fitas cassete. Era um som bem chiado, de baixa qualidade, mas para nós era, certamente, a melhor trilha sonora do mundo.Lembro-me de ouvir Nights of White Satin (Noites de Cetim Branco), de Moody Blue, uma das nossas bandas favoritas à época. A gente ria, conversava sobre o futuro, fazia planos que pareciam gigantes. Ali, na beira do rio, com o pouco que a gente tinha, estávamos felizes. E eis que meio século voou.Nesses anos juntos, percorremos muitas estradas, algumas planas e outras bem esburacadas. O tempo nos trouxe mudanças de cidade, de trabalho, de objetivos e de sonhos. E nos presenteou com duas filhas e quatro netos que nos renovam.Nem sempre foi fácil para nenhum dos dois ter paciência, perdoar e recomeçar. De fato, é quase um milagre que tenhamos conseguido viver juntos tanto tempo sendo tão diferentes em tantos sentidos. Por outro lado, é essa dança de opostos que nos desafia e fortalece.Quando olho para trás, vejo com clareza os ciclos da vida, os começos e recomeços, as desilusões e as alegrias. Mas sobretudo vejo que o amor permaneceu firme, quase uma rocha –, resistindo à correnteza dos dias que o desafiaram nestes 50 anos.Como dizia o cartão recebido de um casal de amigos, por ocasião desse fato, “a vida lhes tornou um casal que prova o mais alto conceito de completude, não do tipo panela-e-tampa, mas algo bem mais dialético, confuso e rico como a vida é!”O pensador francês René Girard, num texto icônico, fala fundo aos que duvidam do amor e do casamento quando diz:“A missão decisiva do amor revela-se ao considerarmos que é amando que se manifesta a característica fundamental da pessoa: a sua transcendência (...) a sua capacidade de amoldar-se a um outro, de apreender-lhe a natureza, de responder-lhe ao valor e de superar a si mesmo.” Ainda não conhecia o Girard quando escrevi este poema intitulado Ao Nosso Amor:(...) Nada em nosso amor seja triste, pois que à lágrima opor-se-á o vento –no silêncio de nossas madrugadas estelares.Só nós dois, amor, resistimos sob a chuva,ao frio e ao calor – entrelaçados, sim;não importa – nada – amor, nem goteirasde um telhado antigo e sob a chuva;um pistilo se anunciando calmo,um que duas estalactites soamplânctons, íons, átomos de um só.Pouco importa ao nosso amor a morte.