Quando eu era pequena e morávamos no Conjunto Lar Brasileiro do Setor Sul, não poderia imaginar que tantas décadas depois eu moraria neste mesmo Setor Sul tão transformado - e olha que o bairro é dos que ainda resistem heroicamente à completa verticalização da cidade.A gente morava longe, naquele tempo. Minha casa era abaixo da Praça do Cruzeiro, que ainda não era uma praça mas já tinha a cruz. E de nossa casa até o Palácio das Esmeraldas só havia mato. Nossa vida transcorria nos arredores do conjunto de casas. Brincávamos com os vizinhos, frequentávamos o Instituto Maria Auxiliadora, que era então uma escola só para meninas. As minhas colegas que moravam no Centro vinham para o colégio de ônibus. Eu ia a pé. Uma vez por semana nos deslocávamos até o Centro para visitar minha avó, que morava na Rua 20. Também íamos ao Centro para comprar roupas e sapatos e para tomar sorvete na Fonte Expresso. Mas era raro. Vivíamos mais por aqui mesmo.Minha mãe visitava os vizinhos e gostava de conversar. Depois de adulta eu brincava com ela dizendo que ela fazia essas visitas acompanhada só da Lígia, minha irmã mais nova que eu, porque a Lígia era daquelas crianças de encher os olhos, gordinha, de cabelo cacheado e covinhas, enquanto eu era magérrima e pálida. Meu pai às vezes falava que eu estava com lombriga. E aí me davam uns comprimidos que pareciam umas bolinhas de gude cheias de um líquido horrível, o lombrigueiro da época.Minha avó de vez em quando ia passar alguns dias lá em casa para ajudar minha mãe. Ela penteava meu cabelo de manhãzinha para eu ir para a escola bem penteada. Minhas colegas que moravam no Centro sempre me pareceram mais ricas, mais sabidas e mais confiantes que eu. Umas até já namoravam, e eu ainda nem sabia o que era isso.Quando íamos passar o domingo na casa de minha avó, se tinha filme para criança no Cine Goiás, a gente ia com a empregada dela. Branca de Neve e os Sete Anões foi um grande acontecimento. Depois íamos ver a fonte luminosa na Praça Cívica, comer algodão- doce e ficar pisando nas bolinhas das árvores, que faziam crec-crec.Meu pai e meu avô se estranhavam muito, principalmente em torno de política. Na eleição em que disputaram Jânio Quadros e o Marechal Lott, meu avô torcia para o Jânio e meu pai apoiava o Lott. Meu pai chegava de visita na casa, “tá bom, seu Pedro?”, com aquele jeito goiano dele. E meu vô, “vou indo, como Deus é servido”, com seu sotaque cearense, e já na defensiva. Daí pra frente, só Jesus na causa pra não sair briga. Minha avó era mansa e submissa, não dizia nada, e minha mãe não era muito ligada em política. Eu sempre ficava por ali, prestando atenção na discussão deles.No domingo seguinte à renúncia do Jânio, nós tivemos de sair da casa da minha avó antes do lanche. A discussão dos dois foi tão tensa que meu avô chegou a brandir um guarda-chuva para meu pai e minha mãe nesse dia chorou. Depois meu pai deixou de ir lá nas tardes de domingo.A vida foi mudando. Passei a ir à matinê com minhas amigas, no Casablanca ou Cine Goiânia. Assisti Sissi, a Imperatriz, Candelabro Italiano e muitos outros filmes românticos. Minhas melhores amigas moravam no Centro, e eu já estava quase namorando. A vida foi mudando e vem mudando até hoje, a infância com suas alegrias e suas dores parece ter sido em outra encarnação. Ainda cruzo as ruas do Setor Sul sem por que nem quando e transformaram-se as formas de meu sonho.E hoje, como tributo a Luís Fernando Veríssimo, uso suas palavras para exprimir aquilo em que meu pai acreditava: “Eu não entendo como uma pessoa que enxerga o país à sua volta, vive suas desigualdades e sabe a causa das suas misérias pode não ser de esquerda. Ser de esquerda não é uma opção, é uma decorrência”.Saravá.