Me pergunto hoje por que as enxurradas de São Paulo se tornaram tão perigosas? As de toda cidade grande. Pela quantidade de carros na rua, claro, e pelas bocas de lobo entupidas”De minha janela, vejo a chuva. Não muito forte ainda.Duas crianças passam correndo e se protegem em um canto da marquise do prédio em frente.Estão com o uniforme escolar, mochilas de cores diferentes, e cochicham uma com a outra (cochicham, não, conversam, eu é que não escuto daqui, muito menos com os pingos da chuva entre nós). Devem morar perto e se perguntam sobre o que fazer: continuar correndo para casa, ou esperar a chuva passar - imagino. Pelo que vejo, decidiram esperar um pouco; coitados, a chuva vai piorar. E chega outro menino correndo para o outro canto da marquise, esse sem uniforme, camiseta sem mangas que parece bem ensopada, magrelo, e ele treme - ou eu imagino que treme porque põe uma ponta da borda superior da camiseta na boca. Quer dizer, o gesto como tal nada tem a ver com tremer ou não, mas me dá impressão de que ele está tremendo, molhado como certamente está, e o tempo esfriando meio de repente. Se estivessem do lado do meu prédio, talvez eu descesse para lhes dar um abrigo melhor. Devem ter 8 ou 9 anos, não mais. Essa seria minha idade quando nós, filhos de uma mãe que adorava “banho de chuva” e a quem adorávamos imitar, saíamos para a rua. Não minha mãe, que ficava no quintal ou no gramado do jardim, enquanto nós corríamos pela Rua 113 do Setor Sul ainda pouquíssimo povoado. Melhor ainda se formasse enxurrada grossa, bonita de ver correr. Meus dois irmãos mais velhos vinham escorrendo por ela que descia toda vermelha pela poeira da rua sem asfalto – e iam parar duas esquinas abaixo. Eu, medrosa para esse tipo de aventura, me sentava no meio-fio deixando-a correr pelos meus pés e pernas e barra do vestido - e aplaudia entusiasmada meus irmãos.Me pergunto hoje por que as enxurradas de São Paulo se tornaram tão perigosas? As de toda cidade grande. Pela quantidade de carros na rua, claro, e pelas bocas de lobo entupidas, fazendo das enxurradas correntezas velozes tal se na Fórmula 1, capazes de levar um carro ou um reles homem adulto de roldão, quem dirá uma criança.Começa a trovejar forte e o vento aumenta. Árvores balançam; gotas tornam-se rajadas e os dois meninos de uniforme e mochilas coloridas não esperam mais. Saem em disparada. Temo por eles. Se não morarem perto, terão dificuldades para chegar, rajadas prejudicam a visão.Já o menino da camiseta molhada não sai de onde está. Talvez porque já conheça esse tipo de chuva o suficiente para não se arriscar. Talvez porque seja um pouquinho medroso como eu era. Talvez porque esteja com frio e faminto e fraco, e espere algum milagre acontecer. Talvez eu pudesse ser esse milagre e, chuva serenando, levar um sanduíche para ele. Talvez um copo de leite e uma mantaMas também ele sai correndo agora. Talvez more perto, como os outros. Talvez, talvez, talvez. Tanto talvez para um simples menino.