Pimentinha, como era chamada Elis Regina, não tinha medo de nada, conta um de seus filhos, o produtor musical João Marcelo Bôscoli. Era um metro e meio de pura valentia. João relata em suas entrevistas o que ouviu da cantora islandesa Björk, que quis conhecer algum descendente de Elis quando esteve no Brasil. “Sua mãe tinha coragem para ir emocionalmente a lugares que eu não consigo, porque não poderia voltar depois”. E assim, com coragem de mergulhar nas profundezas das emoções, Pimentinha encantava o mundo com seu talento e destemor. Se por um lado é essencial para garantir a sobrevivência, o medo pode também ser limitante ou mesmo paralisante. O psicanalista e psiquiatra Jorge Forbes afirma que estamos vivendo atualmente a ética do medo frente a um tsunami de mudanças, aceleradas pela tecnologia. Seria, na sua avaliação, um tempo de prudência diante do novo, o que Forbes considera como a pior coisa que poderia nos acontecer. “Não se cria com medo. A criação exige risco, curiosidade. Com medo, recuamos para o lugar da segurança”. Foi com coragem que os navegadores descobriram um novo mundo, desbravaram territórios selvagens e desconhecidos, subiram montanhas íngremes, exploraram terras geladas, desafiaram temperaturas letais e animais peçonhentos. Foi sem medo que os maiores músicos, escultores, pintores e escritores enfrentaram a página em branco, a tela estéril, a pedra disforme, o piano inerte. Foi com muita bravura que Michelangelo, por exemplo, revelou sua genialidade ao transformar um bloco estreito de mármore em carne, osso, músculos e veias que compõem o corpo do gigante David, uma estátua colossal e única, um presente para a humanidade capaz de despertar emoções inexplicáveis. Aqui, um parêntese curioso: dizem que Michelangelo foi obrigado a usar um bloco de mármore antigo, já rejeitado por outros escultores por ser uma peça estreita para permitir uma obra de qualidade. Além disso, um grande vão já havia sido entalhado em uma parte da pedra. O artista enfrentou o desafio, abusou da criatividade e da qualidade técnica. Sem espaço para manobra, Michelangelo reproduziu uma figura magra, posicionada de lado e de tal forma que permitisse aproveitar o vão para o espaço entre as pernas. Ele não sabia que era impossível, lutou com o mármore de Carrara como um gigante, brigou com marretas, acariciou com formões e trouxe ao mundo uma das maiores obras primas produzida pelo homem. Mais de 500 anos depois, David, com sua expressão pensativa, ainda observa o mundo do alto de seu pedestal. Sobre o vasto planeta de conflitos e violência há um menino magrelo, de queixo longo, olhos vivos e assustados. Aos 11 anos, Bader Monir já está no meio de uma guerra sangrenta. Aos 11 anos, o garoto já tem a responsabilidade de ser intérprete de sua família para pedir socorro, gasolina, colchões, repatriação para o Brasil. “Em Gaza a gente pode morrer. Lá no Brasil, a gente não pode”, disse em um vídeo.No seu português carregado, o garotinho palestino com cidadania brasileira contou que sua casa foi destruída. Ele e a família, junto com um grupo de brasileiros, passaram quase um mês à espera da repatriação, entre idas e vindas, expectativa não confirmadas, tentativas frustradas, em meio a bombas, à fome e à morte. Sabe-se lá quantos pesadelos e medo assolaram suas memórias infantis. Monir talvez carregue para sempre as lembranças traumáticas. Talvez se retraia, ou talvez se fortaleça e ajude o mundo a ficar melhor: seja com arte, seja com descobertas, seja com a ciência, seja com a paz. Antes de qualquer coisa, é preciso que ele durma noites tranquilas e brinque como uma criança, sem o brilho do medo no olhar.