Os preparativos para um momento especial, uma comemoração ou viagem, por exemplo, absorvem toda a energia da entusiasmada pessoa que se vê às voltas com uma série de detalhes e arremates para realizar um sonho. Antes mesmo da epifania, experimenta-se um deslocamento do conforto dos dias como eles costumam ser. A começar pela expectativa, que arremessa ao que virá, saboreado com antecipação.Curioso como também enquanto se organiza para que nada atrapalhe, nenhuma sombra perturbe o brilho almejado, na correnteza de dúvidas sobre essa ou aquela escolha, se antevê também o depois... passada a euforia, o que restará? Boas lembranças, cansaço, uma ponta de angústia a indicar que a expressão de consolo “tudo passa” vale também para experiências que desejaríamos prolongar sem prazo determinado. Uma mistura de melancolia e segurança em acreditar que as coisas vão retomar o rumo conhecido das emoções contidas.É desafiador aguentar alegrias intensas. Aguentar sim, com desfaçatez, o fato de que se atravessa o delírio do que a vida, quando generosa, proporciona. Apenas a entrega às sensações prazerosas, a um sentimento de completude, a uma volúpia de que é isso o que se quer e se alcançou, e de desejar mais e mais... felicidade desorienta, faz a gente se perder de si. Quem aguenta?Logo procuramos um jeito de estragar para recuperar o prumo. É preciso ter medo de delícias assim, desconfiar de que não pode ser, parece obsceno, castigo virá. A velha culpa entra em cena, a sinistra figura criada para aniquilar com sua fala repetitiva de condenação e maus augúrios. Pecado, danação, indecência, como pode flanar em curvas suaves sem arestas sendo só o que é, embora nem saiba bem o que, e tente argumentar justo aí, que são oscilações apenas e dessa vez, por sorte e mérito, para melhor, para usufruir, se permitir...Onde tem culpa habita o medo. Logo ele se insinua, vai tomando forma, emergindo em apavorantes elucubrações de riscos, perigos, prejuízos e ataques. Vulnerável é o que somos, alerta essa personagem, e, apesar da pulsação que insiste em predominar no seu desejo, é preciso o freio do frágil. Vai se estatelar, ficar sem forças para resistir aos embates tramados na próxima esquina, como ousa, Ícaro sem asas, subir tão alto, em ascensão veloz de absurda vertigem, confrontando a queda?Pois digo que dá para driblar culpa e medo, transformar o apavorante em imagem que se encara e decifra, a fera não vai mais devorar a presa, porque esta se libertou. Os monstros que se desenhavam nas paredes irregulares de adobe no quarto escuro da infância, onde o imaginário reinava nas narrativas de assombração e punição aos desobedientes, e agora somem diante da luz.O sonho recorrente de alturas irresistíveis atingidas sem perceber e então o pânico para não cair, não escorregar, não se desgrudar de um ponto de apoio, o medo paralisante, a advertência de não se jogue, não ouse, é a morte... aí o salto no vazio, sobre florestas de árvores gigantes, a súbita e terrível compreensão de que será mesmo trágico o desfecho, mas, para surpresa e júbilo, a descoberta de uma capacidade de flutuar e descer leve, dono de si, apreciando a própria façanha.O rosário de martírios e sofrimentos é infinito, o mínimo de empatia exige compostura em cenário de destruição, dor e perdas irrecuperáveis. Não há como negar e deixar de agir no que nos compete nessa luta insana para evitar a catástrofe. Mas, ainda assim, existem céu e azul, pássaros e estrelas, e o vislumbre de que até gente sonha e voa. Exausta de feliz, mas viva, muito viva, morro de alegria apenas na metáfora.