Primeiro o meu avô morreu. Depois, minha avó foi embora e só então minha mãe começou a contar os segredos da família, as histórias que passei a usar nos meus textos, a experimentar na escrita para encontrar um lugar mais interessante na prosa.Eu já disse a minha mãe que tinha histórias que eu só conseguiria escrever depois que ela morresse. Aí ela me respondeu “Pois eu aguento, filho”, como se me devolvesse a culpa que eu tinha transferido a ela. A culpa era mesmo minha.A mãe é a pessoa que mais se empolga com o meu trabalho. É a que mais fala sobre mim aos parentes, amigas, colegas; nos eventos de arte que costuma frequentar, fala de mim com desconhecidos, como uma neopentecostal fala de Cristo: “Você conhece a palavra do meu filho?”, “Ele é escritor”.É minha maior leitora, a que lê primeiro os manuscritos. E por saber que gosto de escrever histórias familiares, me liga para me alimentar com as “fofocas”. Foi ela que, há pouco tempo, me deu uma história melhor sobre a minha escrita. Encontrou nos porões da família as cartas que os meus tios trocavam. Agora posso dizer que escrevo porque ela e os meus tios trocavam poemas em cartas enviadas dentro de livros; que a escrita é uma herança; que a minha família era artista.Hoje escrevo melhor as dores porque conheço as dores dela, do machismo dos homens que ela conheceu, da estreia do feminismo na família... Hoje a mãe sabe que eu gosto de escrever sobre os enroscos, então me liga para fofocar, ou para alimentar o filho. No entanto, pensei noutra coisa agora: ela ainda não me contou as histórias das paixões como me contou das violências. Quase todas as mulheres da família dela: cuidaram da casa, dos filhos e foram impedidas de viver suas paixões. As que quiseram viver, tiveram de fugir. Minha mãe fugiu a vida toda. Sua primeira fuga foi para estudar. Foi quando se formou, se apaixonou e teve filhos. Sua segunda fuga foi quando nós, filhos, fomos para o mundo. Ela nos deu a liberdade para conquistar a sua também. Hoje viaja mais, sai com as amigas para dançar, faz teatro e, ano passado, foi atriz num curta-metragem que rodou no cinema da cidade. Uma mulher perigosa demais.Tenho certeza de que amou mais do que eu sei, que sentiu tesão, se apaixonou. Tenho dúvidas se já traiu, mas torço para que algum dia me ligue e me conte uma história sobre traição. “Conte-me mais sobre os desejos”, eu anoto no caderno para me lembrar quando a mãe me ligar. N’outro dia, me disse que os homens não se interessavam mais por ela. “Mas está tudo bem”, ela comentou, “não preciso mais dos homens”. No fim, eu acho mais provável é que os homens tenham medo da mãe. Uma mulher que teve quatro filhos de parto natural não quer um frouxo ao seu lado. Domingo passado mandou mensagem no grupo, estava no cinema, ia ver três filmes de uma mostra. Os desejos dela. Não me lembro da mãe falar de homens como fala de cinema. Ela nunca disse “Eu queria aquele homem” quando falava da juventude. Ela já disse mil vezes: “Eu odiava aquele homem”. “Conte-me sobre os desejos”, está escrito no bilhete ao lado, enquanto espero uma ligação da mãe, essa mulher perigosa. Pois têm histórias que eu queria escrever antes que ela fugisse de novo.