Tentados que somos a espiar pelo buraco da fechadura e mais curiosos de tudo quando em estado de turistas, eu quase enfiei meu olho naquele buraco para ver. Para ver o quê? Para ver meu próprio olho. Muitos dos que passavam diante da galeria em Amsterdã o faziam. Na vitrine estava o convite: “Look at your iris”.A galeria se propunha a transformar a íris de cada um em obra de arte. Podíamos já admirar nas paredes vários quadros de olhos com as cores e os desenhos mais diversos.Mas, desconfiada que também sou, me detive. Melhor não. Por que afinal vou querer contemplar minha própria íris? E fazer um quadro dela? Para adornar a parede da sala?É verdade que nossas íris são únicas, irrepetíveis, como as impressões digitais. São aliás mais complexas, possuindo padrões de fibras, cores e texturas diferentes até em gêmeos idênticos. Por isso mesmo.Quem me garante que, se no momento em que eu enfiasse meu olho ali, a íris já não seria escaneada? Devo andar um pouco paranoica. E se a tal galeria desse as minhas pobres íris um outro uso, já que a biometria, isto é, a leitura de íris já vem sendo utilizada como mecanismo de autenticação digital, para abrir portas e acessar contas em bancos.Há pouco tempo vi o caso de uma empresa em São Paulo que estava pagando 600 dinheiros, ou melhor, 600 reais em criptomoedas para escanear os olhos de quem topava. Muitos toparam. Cerca de meio milhão de brasileiros, para ser mais precisa e ficar com os olhos mais arregalados. Quando indagado em reportagem sobre a finalidade do escaneamento, o executivo da tal empresa desconversou.A proposta da empresa, criada por um dos fundadores da OpenAI, a da inteligência artificial, é “coletar dados biométricos da íris para criação da chamada World ID, uma identificação global que permitiria comprovar que o titular é um ser humano único vivo, promovendo maior segurança digital”.A coleta de íris acabou sendo suspensa pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), mas o tal aplicativo já teria sido World foi baixado por cerca de 1 milhão de pessoas no Brasil. Não sei em que pé anda esse caso agora nem cheguei a entrar na galeria em Amsterdã para saber se o quadro de minha íris me custaria os olhos da cara ou se eu teria de assinar um contrato (de um lado liberando meu olho, de outro protegendo-o com alguma cláusula-cílio).Na pior e na mais conspiratória e mais apocalíptica das hipóteses, a galeria e outras empresas estariam já armazenando nossos olhos em bancos para nos controlar e controlar o mundo. Por via das dúvidas, é bom a gente arregalar bem os olhos, ou dormir com um olho fechado e outro aberto, ou ficar com um olho no peixe e outro no gato, pois quem tem olho, é rei.Já na melhor e na mais improvável das hipóteses, a galeria poderia estar criando um Museu de Olhos, onde as pessoas do futuro iriam admirar os olhos das pessoas do passado. No futuro, portanto, poderíamos entrar em um museu em Amsterdã para contemplar as íris de pessoas de todas as partes do planeta, coisa que aliás eu já fiquei fazendo enquanto fotografava a vitrine da galeria.Não enquadrava exatamente olhos, mas o reflexo dos que passavam na própria vitrine, uma diversidade tão grande, tipos, orientais, ocidentais, homens, mulheres, crianças, jovens, velhos, que se misturavam com os quadros e com minha própria imagem refletida. Imagens tão bonitas que me interessavam muitos mais que meus próprios olhos e que não hão de se repetir nunca, em vitrines da Holanda ou de qualquer lugar.A inteligência artificial pode se apropriar de nossos olhos, mas não de nosso olhar. Pode reproduzir o que nos serve para ver, mas não o que vemos. Pode usar os traços e cores para substituir os segredos de cofres, mas não os segredos que guardamos para além deles, dos olhos e dos cofres.