Parecia cenário de guerra. Na calçada, blocos inteiros de telhas que o vento havia arrancado da cobertura da garagem do prédio durante o temporal. Na esquina, parte de uma árvore tombou sobre os fios da rede elétrica, que quase tocaram o chão, interditando a passagem de carros e pedestres.Esse foi o saldo da chuva que caiu no último domingo. Lembro-me de que, antes de sair de casa, olhei a previsão do tempo no celular para ter certeza de que estaria abrigada quando a tempestade viesse. Estacionei o carro longe de árvores ou marquises, para evitar o risco de desabamento e acidentes.Hoje, tenho medo da chuva. É um sentimento estranho, porque nascida na década de 1970 e tendo acompanhado a vida na cidade de lá para cá, a chuva era sinônimo de conforto e boas lembranças. Talvez o leitor não compreenda, mas é que naquela época costumava “invernar” em Goiânia.O termo vinha do fato de que, durante os meses de novembro e dezembro, até a primeira quinzena de janeiro, caía uma chuva fina e incessante na capital, que baixava a temperatura e deixava o céu nublado. Dizíamos, então, que “invernava”, e nos preparávamos para passar o Natal e o ano-novo em clima úmido e ameno.A chuva tinha cheiro de terra molhada e manga madura na minha infância. Como morávamos no Setor Sul, em novembro começávamos a procurar as mangueiras carregadas do bairro e fazíamos até concurso para ver quem “catava” mais frutas — porque goianiense raiz não pega nada, ele cata.Os pingos finos que caíam do céu tinham gosto de bolinho de chuva, que minha avó fritava para os netos e servia com café quentinho, nas tardes cinzentas das férias de dezembro. Tinham gosto de tender e peru, que minha mãe preparava para a ceia natalina.A chuva era sinônimo de bagunça, alegria e partilha. Minha avó não comemorava o aniversário em casa. Décadas antes de eu nascer, decidiu que celebraria a data em alguma instituição filantrópica e que, em vez de ganhar presentes, queria que as pessoas doassem para a entidade escolhida.Cresci dentro de uma Kombi velha, dirigida por um motorista apelidado de Gordinho — que, ironicamente, era magro como um varapau, e cujo nome de batismo nunca soube. Ele percorria com minha avó Mariquinha e com a então diretora do Educandário Afrânio de Azevedo, dona Dirce, os lugares onde buscávamos os donativos.Descíamos da Kombi de sombrinha e voltávamos com sacos de comida, engradados de refrigerante e brinquedos tão ensopados quanto nós. Depois, fazíamos um mutirão para embalar os presentes, e o desafio era impedir que a chuva derretesse os papéis de embrulho.Na juventude, a chuva passou a ter gosto de cerveja e cheiro de churrasco. Ela nos acompanhava nas chácaras que a turma alugava para passar o réveillon. Era sinônimo de risadas, partidas de Imagem e Ação e truco, nas tardes e noites em que ficávamos empoleirados dentro de casa porque não era possível ir para a piscina.Também era lembrança de romance, como na vez em que, depois de brigar com um ex-namorado, ele passou na minha casa para fazermos as pazes. Colocou Kiss the Rain no toca-CD do carro e perguntou se eu já havia beijado na chuva. Respondi que não. Ele me puxou para fora e experimentamos um beijo molhado e apaixonado.Hoje não inverna mais. A água que cai do céu se mistura violentamente ao “rio de asfalto e gente / entorna pelas ladeiras / entope o meio-fio”. Como na letra de Clube da Esquina nº 2, de Lô Borges — que partiu esta semana —, ela nos faz oscilar entre os gases lacrimogêneos e os sonhos que não envelhecem.E lá se vai mais um dia.