Ainda Estou Aqui é um filme discreto e elegante que evita as armadilhas óbvias (sentimentalismo, esquematismo) ao lidar com certos temas (ditadura militar, tortura, memória x apagamento do passado) e narrar a história de uma mulher e sua família. Discrição e elegância se dão porque Walter Salles é um cineasta de abordagem clássica em termos de enquadramento e decupagem, mas não só por isso. Também é uma questão de temperamento. Hoje, traçarei um panorama da carreira do diretor. Na próxima coluna, abordarei o filme premiado com o Oscar.Salles não é agressivo ou sardônico, o que explica o relativo fracasso estético de A Grande Arte, adaptação do romance homônimo de Rubem Fonseca que marcou sua estreia na direção de longas, Água Negra, um filme de terror sem terror (lançado hoje, seria elogiado pelos jecas como “pós-terror”), e Na Estrada, recriação sóbria do “benzedrínico” romance de Jack Kerouac. Mas é curioso como, embora não sejam bons filmes, eles são passáveis. Um filme ruim de Salles não ofende os olhos nem o cérebro, e isso tem a ver com a abordagem supracitada. Quando o sujeito domina aquela gramática, assentada há um século, o produto raramente é incômodo (no mau sentido).O que diferencia os bons e os maus filmes de Salles é a escolha do roteiro. Água Negra, o original de Hideo Nakata, conta a mesma história de forma estupenda, mas aquela não é a praia do diretor — o cinema de terror exige outro tipo de educação sentimental cinefílica. E por que ele foi se meter com o clássico beatnik? Se existe um cineasta não beatnik no mundo, esse cineasta é Salles.Mas, quando é bom, ele é muito bom. Terra Estrangeira é um belo filme sobre o confisco da alma nacional, quando até a ideia de exílio perde o sentido ou também nos mata. Central do Brasil registra o clímax da Nova República e de um sopro de país que experimentamos por dois segundos. Abril Despedaçado é o pesadelo que todo sudestino rico tem quando sonha com o Nordeste (aquela Albânia) depois de comer um pato com molho de framboesa n’a bela Sintra. O Primeiro Dia nos apresenta o velho país que tínhamos pela frente, simbolizado por aquela relação tristíssima da Fernanda Torres com o Carlos Vereza (eu sei, eu sei, haja suspensão da descrença). Linha de Passe, melhor filme do diretor, antecipa o funeral da Nova República (não, não me refiro ao rebaixamento do Corinthians) — Sandra Corveloni, premiada em Cannes, é a mãe de todos nós que não somos (muito) canalhas.Terra Estrangeira, O Primeiro Dia e Linha de Passe foram codirigidos por Daniela Thomas, responsável (em voo solo) por um dos melhores filmes brasileiros deste século: Vazante (escanteado pela desinteligência nacional por motivos de “lugar de fala”). Gostaria de dizer que o tempo fará jus a Vazante, mas o esquecimento e a obliteração são esportes nacionais por excelência.Voltando a Salles: e Diários de Motocicleta? Enquanto aventura juvenil e filme de estrada, funciona. Enquanto retrato do revolucionário quando jovem, nem tanto, pois não identifico ali os sinais do futuro assassino em massa (todo revolucionário que se preze é um assassino em massa). Há o jovem idealista amigo dos leprosos. É o bastante? Do ponto de vista dos leprosos, sim. Mas, enquanto cinema, tenho com Diários de Motocicleta a mesma relação que tenho com Nixon, de Oliver Stone: são dois bons filmes protagonizados por recriações ficcionais.