André de Leones

A cena está em Uma Batalha após a Outra, filme de Paul Thomas Anderson: a revolucionária negra, grávida, atira com uma metralhadora em um campo de treinamentos no meio do nada. Ao terminar, berra que se sentiu como Tony Montana. Isso pede uma digressão.

Interpretado pelas narinas de Al Pacino no estridente remake de Scarface (1983) dirigido por Brian De Palma, Montana é um criminoso cubano que chega a Miami em meio ao Êxodo de Mariel, ocorrido entre 15 e 31 outubro de 1980. Contexto: a economia cubana ia mal, os humores do populacho pioravam e Fidel Castro não só “autorizou” a debandada em massa (no melhor estilo “Cuba: ame-a ou deixe-a”) como deu um jeito de esvaziar prisões e hospícios, misturando criminosos e doentes mentais com os demais passageiros dos barcos. Mais de 120 mil pessoas aportaram na Flórida por aqueles dias.

Montana chega aos EUA e consegue visto de permanência após assassinar um castrista no acampamento de refugiados. A partir daí, o filme narra a ascensão e a queda desse simpático empreendedor. Acompanhamos sua carreira como assassino (o entrevero com os colombianos é particularmente ensolarado), traficante, viciado e incestuoso (a irmãzinha é um foco de tensão, por assim dizer). Scarface é um filme sobre excessos, filmado de forma excessiva — em termos de excelência técnica e brutalidade decadentista, é superado apenas por Cassino, de Martin Scorsese.

Paul Thomas Anderson não é um decadentista. Os personagens que cria (inclusive os malvados) moram de pantufas no coração desse cineasta que não raro emula Robert Altman (vide Boogie Nights e Magnólia), mas sem o cinismo etílico do mestre missuriano. Altman é um sacana orgíaco; Anderson, um onanista feliz.

Voltemos à cena supracitada de Uma Batalha Após a Outra. A tal revolucionária, Perfidia Beverly Hills (Teyana Taylor), integra um grupo chamado French 75 — homônimo do hediondo coquetel feito com gim, champanhe, suco de limão e açúcar (sem metanol, por favor). O tal grupo não tem esse nome por causa do coquetel, mas, a exemplo do coquetel, homenageia o canhão francês de 75mm modelo 1897 muito utilizado na Primeira Guerra Mundial.

Honrando seu nome de guerra, Perfidia se atraca com o inimigo, o militar Lockjaw (Sean Penn), a quem ela “violenta inversamente” (não) e depois usa para se safar, delatando a companheirada (sim). Nem mesmo Tony Montana faria uma coisa dessas. Dezesseis anos após a traição e a debandada do French 75 (quem não fugiu, morreu), o ex de Perfidia, Bob (Leonardo Di Caprio), vive com a filha deles, Willa (Chase Infiniti), nos cafundós californianos. Bob era membro destacado do grupo, mas passou a última década e meia alimentando a paranoia, fumando maconha e enchendo a cara.

A paranoia de Bob é justificada quando Lockjaw, convidado a integrar um grupo supremacista, precisa descobrir se Willa é sua filha biológica e, caso seja, matá-la, pois o clubinho não aceita em suas fileiras gente que procria com negras. A partir daí, o filme se torna uma corrida maluca das mais divertidas. Voltarei a ele na próxima coluna, quando também discorrerei sobre o livro no qual se inspira (Vineland, de Thomas Pynchon) e os ruídos que tem provocado.

Nada cumpre o que prometeu (1)

Crônicas e Outras Histórias

Assine - Offers Target - 2

Matéria - Crônicas

Quando a estupidez coletiva me esbofeteia, agressão que se tornou comum de 2018 para cá, tenho ganas de me trancar num quarto escuro e, em posição fetal, chamar a mamãe. Se resisto às últimas instâncias do desespero, é por um raciocínio ingênuo para um sujeito de 52 anos, já grandinho para ter esperança. Lembro, num esforço para não desistir da humanidade: o mesmo bicho que festeja 7 de setembro enrolado numa bandeira dos Estados Unidos, ou acha que corrupção tem lado, também é capaz de coisas estonteantemente belas, como o xadrez.

Se houve algum projeto celestial para evoluirmos de uma molécula primordial até esse cérebro complexo, escravo de prazeres, certamente foi para desaguarmos nesse tabuleiro de 64 casas, onde cabem todas as dimensões da vida. Isso que os indianos inventaram no Século 6 é uma metáfora quase literal da existência, porque propõe projetos em conjunto sem jamais alimentar a ilusão da igualdade. O espaço que há diante das peças é o mesmo, mas as possibilidades de movimentação são limitadas na largada – exatamente como em nossas estruturas sociais.

Ainda que um Peão consiga avançar seis casas, virando uma Dama trans, o triunfo individual não mascara a realidade: chegou até ali sob a bênção de poderosos, enquanto outros sete pereceram no caminho. Um Peão promovido sempre será subproduto de um sistema hierarquizado, pouco poroso a quem vem de baixo. A sugestão de verdades indigestas apenas pela poética dos movimentos dá ao xadrez um contorno de arte. E arte assim, ensina Freud, é uma sublimação, destino elevado para nossos impulsos mais primitivos.

Mas, ok, alivio o ranço marxista ao falar da capacidade do jogo em desnudar personalidades. O xadrez é um convite à ponderação, porque pune fatalmente a ansiedade e a desatenção. Quando me perguntam se sei jogar, digo logo que só aprendi as regras. Sigo regido internamente por ouriços imaginários que me fustigam as ideias, e me coloco como presa dócil até para adversários também ruins, mas com mais compostura emocional. Jogar xadrez, portanto, é outra coisa, só acessível a almas artísticas de rigor lógico.

Há por fim uma camada filosófica: a promessa de infinitas combinações de movimentos sobre o tabuleiro não se concretiza, porque há um limite matemático. Aquilo que não conseguimos imaginar também existe, e essa lembrança da pequeneza da nossa condição é muito bonita.

Por que então, sabedor dessa formosura, deletei o app de xadrez do celular? Bem, sou dado a vícios e, imprudentemente, me meti a jogar partidas de 1 minuto, chamadas pelo adequado nome de bullets. Como bala de revólver, é uma modalidade que destrava o que existe de pior em nós. Toda a estratégia morre: triunfa aquele que resiste 60 segundos sem levar um xeque-mate. É um prêmio à covardia, ao subterfúgio, ao mascaramento da inabilidade, tudo o que o xadrez não é. E o pior: as vitórias obtidas no esquema neoliberal de produtividade ativam o mecanismo de recompensa do cérebro, escravo de prazeres, e o maravilhoso jogo fica reduzido a um Candy Crush ou um Tik Tok. Por amor ao xadrez, saltei fora.

A próxima vez que a estupidez coletiva me esbofetear, o que é um risco iminente, não vai me restar alternativa que não chamar a mamãe em posição fetal no quarto escuro.

Entre peões e vícios: um elogio ao xadrez

CRÔNICAS E OUTRAS HISTÓRIAS

Vem comigo, leitor, apesar desse título que relutei em estampar porque bem sei que de dor todos sabemos e tentamos fugir. Uma dor que não tem nome só pode ser a pior delas, sem bordas nem limites, impossível de recobrir com palavras e símbolos, uma dor além de toda e qualquer compreensão. Mas uma dor que se sente, como o amor, mesmo sem poder alcançar a sua mais completa tradução.Como já mencionei o amor, adianto que ao saber dessa dor indizível, o efeito imediato foi consternação, tentativa impossível de plena empatia, porque quem falava poderia cantar com o poeta: “A dor é minha só/ não é de mais ninguém”. Fiquei comovida, deslocada, tocada pela tristeza. Mas não demorou e fui tomada por intenso ímpeto amoroso, uma disposição de amar sem medida nem exigência, apenas em profunda doação e comunhão.Compartilho, então, essa possibilidade de me aprimorar apenas com a escuta interessada, que se pretendia generosa na atenção e tempo entregues a uma pessoa quase desconhecida, e que descortinou perspectiva melhor de entrega à vida.Diante de uma dor que não tem nome, qual a dimensão, o significado, de picuinhas e carências que inventamos para nos distrair do impacto real de estarmos expostos a riscos, perigos, perdas, à morte que pode aguardar numa curva do caminho onde se passava sem noção do fim iminente?Aguardava sentada na sala de espera quase vazia de uma clínica, conferindo mensagens no celular, o que nos exila da cena presente, quando uma esguia senhora veio ocupar a cadeira bem ao lado da minha. Sorri, disse bom dia e já ia mergulhar de novo no universo virtual de atrações instantâneas, quando ela disse assim: Estou numa vontade de bater perna...Olhei a figura feminina delicada, mais velha que eu - depois me contou que já tinha mais de 80 anos -, e respondi matreira: Vá bater perna, uai... até sugeri passeio em shopping próximo de onde estávamos. Ela riu e disse que não se arriscava, porque a filha mantinha vigilância constante. É da polícia, explicou, o que me fez rir e brincar que, nesse caso, eu preferia não ser cúmplice da falcatrua.Foi quanto bastou para que se instaurasse confiança para desabafo sincero. Começou pela descrição do torpor que a dominou depois de ver outra filha, vítima de grave acidente. “Não tive qualquer reação, fiquei apenas quieta, só consegui chorar mais de dez horas depois.” A filha desfigurada e morta. Torpor, me explicou, descobriu depois que foi isso, torpor. Como se ficasse anestesiada, emendei. Concordou.Mencionou que passou a ler, estudar, procurar entender na troca com outros que passaram por situação extrema semelhante, e se deparou com livro intitulado A Dor que Não Tem Nome, escrito por uma mãe após morte prematura do filho.Quando ocorreu a tragédia? Não era recente, quase 30 anos atrás a jovem linda cuja foto vi se foi para sempre. E hoje, como é? “Fiquei mais e mais impregnada dela, ela está em mim, comigo, o tempo todo falo com ela, tenho certeza de que vamos estar juntas quando eu também me for.”Ficamos em silêncio até minha filha chegar, de órteses, amparada pelo andador, sorridente. Lembrei de quantas vezes chorei, lastimei, me revoltei nas sessões de terapia por não aceitar que minha menina tivesse que enfrentar tantas dificuldades, tanta luta. Por quê? Por quê? Até que um dia, a analista encerrou nosso encontro com o seguinte corte: já pensou que ela está viva?Como disse e enfatizo, a dor que não tem nome me alertou para a urgência de amar. Amar apenas, sem mistificação.

A dor que não tem nome

Semana passada, enquanto estava parada em um congestionamento na entrada de Brasília, senti uma pancada forte na traseira do carro e ouvi o barulho da colisão. Distraído, conferindo o celular em vez de olhar para frente, o motorista atrás de mim acelerou e bateu no porta-malas. Resultado: automóvel parado por quase dois meses na concessionária e prejuízo financeiro.

Dias depois, na consulta com meu médico, comentei o episódio e refletimos sobre o quanto a distração com o celular tem nos feito mal. “Além de acidentes, o uso excessivo do aparelho causa ansiedade, insônia e lesões musculares. Daqui a alguns anos, teremos uma legião de pessoas corcundas, com dor crônica na coluna cervical”, observou ele.

Confessei que também perdia o controle do tempo rolando o feed das redes sociais e sentia todos os sintomas que ele havia mencionado. “Pois então, saia da tela dos homens e vá para a tela do criador. Levante a cabeça e olhe para o céu, para os pássaros, para as árvores e as flores. Se fizer questão da criação humana, leia um livro”, recomendou, rindo.

No dia seguinte, decidi tentar. Cedo, ao levar minha cadela para o passeio matinal, fiquei mais tempo do que o habitual. O céu estava azul, intenso. O canto das maritacas, pulando agitadas de uma árvore para outra, prendeu minha atenção e me divertiu.

Depois do café, abri o notebook, em vez do celular, para ler os e-mails e as manchetes do dia. Uns 20 minutos depois, fui cuidar da vida. No elevador, percebi que ninguém me olhava — todos estavam com o celular nas mãos. O jeito foi olhar para a porta até que ela se abrisse.

Na praça de alimentação do shopping, notei que eu era uma das poucas sem celular. À exceção de algumas mães alimentando os filhos, de três idosas que riam alto e de uma criança de uns 7 anos esperando o pai voltar com o lanche, todos olhavam fixamente para a tela.

Como eu estava atenta ao ambiente, um homem começou a me olhar e sorrir. Tentei lembrar se o conhecia, mas não. “O rapaz pensou que você estava de paquera com ele. Hoje em dia, quem mais fica à toa, olhando o mundo ao redor?”, brincou minha amiga, gargalhando.

À noite, em casa, escolhi um dos livros que havia ganhado de presente de aniversário. Comecei por Oração para Desaparecer, de Socorro Acioli. Assim que terminar, lerei Tudo sobre o Amor, de Bell Hooks, e A Vegetariana, de Han Kang. Foi difícil parar. A história de Acioli era envolvente e eu não queria sair dali.

Na hora de dormir, percebi que estava mais tranquila. Os olhos não ardiam, a vista não doía e o sono chegou rápido. Não fiquei pensando em viagens que não fiz, festas que não dei, roupas que não comprei ou vinhos que não tomei — pensamentos que costumavam surgir depois de ver tudo isso no Instagram de outras pessoas.

No outro dia, ao dirigir pela cidade, o trânsito voltou a parar. Em vez de pegar o celular, levantei os olhos. O sol alaranjado criava um efeito rosado nas nuvens. A tela do criador se renovava diante de mim — viva, colorida, em alta resolução e gratuita. Pensei em como é curioso que tantos de nós prefiram a pequena tela que cabe na palma da mão àquela que se estende até o horizonte. Apreciar o que está vivo diante dos olhos não apenas alimenta a alma, como também nos mantém inteiros — e seguros — no caminho.

A tela do criador

Sento-me ao teclado sem um pingo de vontade de escrever coisa nenhuma. Mas já sei que, quando começar, vou achar bom. Esqueço da vida, escrevendo, mesmo sabendo que só escrevo sobre ela, a vida, em seus becos, em seus escaninhos, em seus ecos e fragmentos, a vida.

Mas antes de chegar aqui, de frente ao teclado, onde, presumidamente, sou dona de mim mesma, já lavei o resto de louça na pia da cozinha (o corretor escreveu louca ao invés de louça, e talvez esteja certo), já fiz minha cama pois ver cama desarrumada me faz um secreto mal, já fui ver se as plantas estão bem, já penteei o cabelo cada dia mais branco, fiz todas essas coisas que mulheres fazem dentro de casa.

Talvez seja por isso que a Virginia Woolf tenha escrito Um Teto Todo Seu, sobre a mulher não ter um lugar para escrever, um lugar que seja só dela. Porque casa, para a mulher, sempre foi local de trabalho. Tudo é filho, tudo é marido, tudo é almoço e jantar e o dia seguinte, e roupas pra lavar, pendurar, guardar. Tudo é ir à feira e comprar, comprar, comprar comida para os outros e para si própria. Vida de mulher, bolsa de mulher, a casa que é principalmente da mulher. E os dias, as tardes, as frutas se perdendo na fruteira, meu coração envelhecido, e o vento que encheu a casa de poeira, Cristo amado!

E no entanto, mas porém contudo, e ao longo de 50 anos, depois das lides, depois das horas, tarde, tarde, tarde da noite, sento-me em frente a algum dispositivo para escrever. Antes era caderno e lápis, páginas inteiras com a letra ansiosa, escrevendo. Depois a máquina de escrever, e tomando cuidado para que o tec-tec da máquina não acordasse as crianças.

Em seguida, o computador e sua distância do que podia ser - às vezes - artesanal. E hoje o laptop, que também prescinde de minha letra ansiosa e do contato com o papel. Prescinde do cheiro de tinta da máquina de escrever. E me segue aonde vou.

E de repente percebo que é precisamente sobre o tempo que escoa findo que quero falar. Sobre minha procura de Deus, desde pequena rezando alto na igreja com minha avó, para ela depois contar como eu rezava alto e com força a Ave Maria. Muito mais tarde lendo Um Curso em Milagres e fazendo todos os exercícios, lendo Sidarta e tudo sobre o hinduísmo, procurando Deus. (“Eu não sei se vem de Deus do céu ficar azul”, como a Gal cantava).

Ah, mas você está fugindo do tema, Maria Lúcia. Você estava falando dos trabalhos, das exigências da vida de mulher. E de como era difícil achar um canto, um momento, uma instância, uma caneta.

Sim, verdade. Estava dizendo que muitas mulheres não dispõem de tempo para sua arte, yes. Mas sempre, sempre esta pergunta sem resposta completa: Por que escrever? E para quê?

Para que de mim, se nada mais restar, brilhem pelo menos alguns versos no escuro?, como eu já disse num poema?

Teci tapetes, tenho muitos. Nunca aprendi a pintar, e vivo me prometendo aprender a bordar com linha, mas continuo adiando ir à primeira aula. Minha madrinha tentou me ensinar, mas eu fugia. Agora fico querendo aprender. À procura do tempo perdido?

Eu gosto das palavras, nasci assim. É nelas que me fio, é com elas que me deito e me levanto. Gosto do que evocam e do que escondem.

Vou procurá-las agora, para escrever.

Porque é a única coisa que sei (um pouquinho) fazer.

Saravá.