A mulher que aparece no vídeo do Instagram tem os olhos pequenos de tanto chorar. A pele morena e o cabelo cacheado evidenciam sua semelhança com a filha. Ela agradece a vaquinha feita pelo público para pagar o traslado do corpo da jovem morta no Rio de Janeiro até a cidade de Pedro Gomes, no Mato Grosso do Sul. “Passamos o velório lembrando as histórias dela com os amigos”, conta, em meio às lágrimas.Ela é Adriana, mãe de Ana Clara Benevides, a estudante de psicologia de 23 anos que morreu durante o show da cantora Taylor Swift, no dia 17. Ana e mais de mil outras pessoas lotaram os postos de atendimento médico no local, passando mal com a sensação térmica de quase 60º C no Estádio Nilson Santos e a falta de água para o público. Em outro post, leio que a vaquinha foi realizada pelas fãs da artista.Ainda na rede social, assisto a outro vídeo, dessa vez de uma moça que desmaiou de calor e presenciou o atendimento dos socorristas a Ana Clara, ao tentar reanimá-la após a parada cardíaca sofrida. “Eu sabia que ela havia morrido porque era negra, mas os pés ficaram da cor de papel e o sangue do rosto dela sumiu completamente. Foi muito forte”, relembra a jovem.Após o episódio, cambaleante e trêmula, ela explica que tentou voltar à área onde estavam os amigos e aproveitar o espetáculo, mas não conseguiu. “Tiraram meu soro da veia na metade, porque a fila para as macas era enorme e eu já estava consciente. Caminhei um pouco, cantarolei algumas músicas e não deu mais. Foi por isso que não postei nada sobre o show”, alega.Novos posts mostravam adolescentes com queimaduras de segundo grau nas pernas, por causa das placas de metal colocadas no chão do estádio. Havia a promessa de que as fãs fariam uma homenagem a Ana Clara no show de segunda-feira. No entanto, a ideia foi abortada e, em vez de formar o nome da jovem com as luzes dos celulares acesas, preferiram ovacionar a cantora.Não é mera impressão: normalizamos o abuso. Ao ponto de vermos uma pessoa perder a vida e outras milhares desmaiarem em condições sub-humanas e desistirmos de protestar, pois isso poderia agravar a crise de imagem da cantora na imprensa nacional e internacional. Ao ponto de nos obrigarmos a aproveitar o show e criar conteúdo, mesmo após presenciar uma morte.Ao ponto de, diante da total omissão da empresa responsável pela organização do evento e do poder público municipal e estadual sobre o traslado do corpo, tirarmos dinheiro do nosso próprio bolso para levar a jovem morta para sua cidade, para proteger a reputação da artista idolatrada e impedir que ela sofresse mais desgastes.Ao ponto de sermos enxotadas do show de sábado faltando apenas duas horas para começar, depois de oito horas na fila, sob um sol de 43ºC, de sermos vítimas de arrastão na saída do estádio, de precisarmos nos virar para remarcar passagem e hospedagem e, ainda assim, voltarmos na segunda-feira e lotar o evento.A terapeuta Cláudia Lebie atribui a normalização de abusos como esses à falta de limites e de referências de respeito da sociedade brasileira. “Nosso grau de tolerância aos maus tratos e ao desrespeito é imenso. O público dessa cantora é majoritariamente jovem e feminino. Que mensagem estamos passando a essas jovens, para que se submetam a esse nível de insegurança e caos?”, questiona.“Enquanto não aprendermos a estabelecer limites, seremos muito abusadas, em todos os níveis da vida”, adverte Cláudia. Não por acaso, um dos vídeos que viralizou é o de Suzana, uma mãe que desabafou após o show cancelado: “Dia 20, isso aqui tinha de estar vazio. Brasileiro paga o que for, come arroz com ovo e vem bater palmas para ela, que deve no ar-condicionado do Hotel Fasano. Eu não venho dia 20. Exijo respeito”. Era o que todas nós deveríamos exigir.