Adalberto de Queiroz

Um dos meus destinos na próxima primavera italiana possui vários espaços culturais consagrados a escritores – como Virgílio, considerado o poeta-Pai do Ocidente – a Giacomo Leopardi, Tomasi di Lampedusa e Torquato Tasso, entre outros.

Tendo visitado diversas casas-museus ao redor do mundo, descubro em Roma um roteiro literário que salta adiante e se antecipa a outros interesses. Desejo seguir os rastros do “poeta brasileiro de Roma” – o mineiro Murilo Mendes, que viveu na capital italiana de 1957 até sua morte em 1975.

Sua vida e obra são alvo de um profundo estudo de Maria Betânia Amoroso e de uma exposição no Museu que leva o nome do poeta, em Juiz de Fora.

Amoroso nos conta que, tendo o poeta mineiro formação francesa, ao superar a hesitação em viajar, começou seu périplo pelo mundo através da França, depois pela Espanha, vindo a se interessar pela Itália mais tarde.

Carlos Drummond de Andrade disse em carta-poema que “mineiros há que saem e mineiros que ficam”. O Murilo da idade madura é um dos que partiram e conquistaram novas terras. Ele é da família dos que saíram de Minas “de braços longos para os adeuses”.

Curiosamente, Murilo exaltava os não-viajantes. Ele escreveu em reportagem intitulada Viagem ao Recife: “eu fundara há alguns anos atrás, com Aníbal Machado, o Anti-Touring Club, composto por mineiros pouco dispostos a viajar...”

Depois, não se interessava apenas por viajar, mas fixar-se em Roma, ser aceito no meio intelectual e das artes plásticas, missão na qual teve êxito e, logo que dominou a língua italiana, começou a ser requisitado por revistas e para palestras sobre literatura, tendo se tornado professor da Universidade Sapienza de Roma.

Em 1972, Murilo Mendes recebeu o Prêmio Internacional de Poesia Etna-Taormina, uma das mais importantes distinções europeias da época e justamente considerado o Nobel da poesia na segunda metade do século 20.

Murilo foi indicado à honraria pela antologia Poesia Libertà, organizada pelo tradutor e diretor teatral Ruggero Jacobbi. A premiação foi um reconhecimento de sua contribuição à poesia e elevou o nome da literatura mineira à cena internacional.

O poeta Carlos Drummond de Andrade comemorou a premiação do amigo mineiro com humor: “É hora de tremular bandeiras, minha gente; de buzinar, badalar, clarinar, tirar o chope mais geladinho, entoar o jingle, a canção báquica em louvor do juiz-forano esguio e ilustre cuja poesia sensibilizou juízes európicos cheios de nove-horas, de sutilezas críticas, de critérios mais-que-abstratos”. Vou ao encontro de Murilo Mendes em Roma.

Mais do que registros na Via del Consolato, 6, apartamento do poeta; e outros endereços onde esteve; estará sempre comigo a sombra do poeta que me virá fazer companhia nas praças e cafés romanos, como me consola há tanto tempo com seus poemas como em Templo de Segesta:

A Segesta com amor e lucidez eu vim...

Porque severo e nu, desdenhas o supérfluo,

Porque o vento e os pássaros intocados te escolhem,

Sustentas a solidão, manténs o espaço

Que o homem bárbaro constrange:

Em torno de tuas colunas

O azul do céu livre gravita...

Nos rastros do poeta brasileiro de Roma

Crônicas e Outras Histórias

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Matéria - Crônicas

CRÔNICAS E OUTRAS HISTÓRIAS

De volta à vida de sempre, ao meu cotidiano, fico - por enquanto, pelo menos - me lembrando de Londres, tão bonita, e de alguns momentos vividos nessa viagem.

As poucas pessoas com quem conversei, assim mesmo quando eu puxava assunto, porque, como todo mundo sabe, os ingleses são reservados, a essas poucas pessoas eu dei um jeito de perguntar o que achavam do Trump, e elas disseram que o achavam ridículo. Assim mesmo, “ridiculous”. E quando fui em frente e indaguei de uma delas se ele dava medo, ela respondeu que não, porque a Inglaterra gostava de guerra e não temia guerrear nem com os States. Bem assim. E eu: Vocês gostam de guerra mesmo? Ela respondeu: “Gostamos. E até hoje ganhamos todas. Fomos até lá na Argentina ganhar uma guerra”!

Dessa eu até ri. O que chama a atenção é aquela certeza inabalável deles de que são os melhores em tudo. Mas há um senso de humor também, que é muito bom. E conseguem rir de si mesmos, até certo ponto, nas coisas menos importantes para eles. São uma mistura de traços, como todos nós.

Uma outra senhora com quem conversei no ônibus me disse com todas as letras que os povos colonizados por eles deveriam lhes agradecer porque só aprenderam coisas boas com a dominação britânica. Pensem.

No British Museum, a gente se assusta com a quantidade de múmias, sarcófagos e artefatos egípcios que enfeitam as incontáveis salas lotadas de obras de arte. Até a Pedra da Roseta eles tomaram dos franceses, que haviam tomado antes do Egito. Assim é fácil, cara-pálida.

Enfim, estou de volta a meu País lindo e cheio de problemas, tadinho, mas que a gente ama de qualquer jeito, até sabendo que nem no futebol somos mais os melhores. É só sair um pouquinho e já bate a saudade.

E chega também para mim a hora de lembrar que se aproxima o centenário de Afonso Felix de Sousa (1925/2002) no dia 5 de julho, e que estamos pensando em fazer uma homenagem a ele, o que é mais do que justo, pelo grande poeta que foi, pelo homem simples e amoroso que era, inclusive ao cantar nossa terra.

Vários amigos e intelectuais de valor daqui já se comprometeram em participar. Haverá homenagens em Goiânia, em Jaraguá, na cidade de Goiás e no Pen Clube do Rio. Pessoas de Pires do Rio virão presenciar a celebração.

Se pudesse eu diria ao meu tio poeta (foi dele que ganhei O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Bronte, que meu pai dizia ser o melhor romance já escrito por uma mulher, e foi a ele também que primeiro mostrei um poema que escrevi para Virginia Woolf, de que ele gostou muito), se pudesse eu agora lhe diria que me lembrei muito dele na Inglaterra, e que muitas vezes me percebo vendo o mundo com seus olhos. Especialmente quando abro sua antologia ao acaso e me deparo com versos como estes:

VIII

Eternizar o amor que fora eterno

embora só vivesse dois instantes:

um quando ao céu me alçou - um céu sem antes;

depois ao acender em mim o inferno.

&nbsp;

Banida do presente, em lago terno

voltes a me banhar e desencantes

o mar que clama em vão, de ondas cortantes

partindo do meu ser, banhando o eterno.

&nbsp;

Eternizar o amor de um só momento

e quanto mais perdê-lo mais ganhá-lo

e quanto mais ganhá-lo mais alento

&nbsp;

Trazer no que recordo e no que falo,

para que possa, em febre e em sentimento,

em mármore e saudade eternizá-lo.

&nbsp;

(Sonetos do Amante, 1948/49)

Relembranças londrinas: o centenário do poeta

Primeiro o meu avô morreu. Depois, minha avó foi embora e só então minha mãe começou a contar os segredos da família, as histórias que passei a usar nos meus textos, a experimentar na escrita para encontrar um lugar mais interessante na prosa.Eu já disse a minha mãe que tinha histórias que eu só conseguiria escrever depois que ela morresse. Aí ela me respondeu “Pois eu aguento, filho”, como se me devolvesse a culpa que eu tinha transferido a ela. A culpa era mesmo minha.A mãe é a pessoa que mais se empolga com o meu trabalho. É a que mais fala sobre mim aos parentes, amigas, colegas; nos eventos de arte que costuma frequentar, fala de mim com desconhecidos, como uma neopentecostal fala de Cristo: “Você conhece a palavra do meu filho?”, “Ele é escritor”.É minha maior leitora, a que lê primeiro os manuscritos. E por saber que gosto de escrever histórias familiares, me liga para me alimentar com as “fofocas”. Foi ela que, há pouco tempo, me deu uma história melhor sobre a minha escrita. Encontrou nos porões da família as cartas que os meus tios trocavam. Agora posso dizer que escrevo porque ela e os meus tios trocavam poemas  em cartas enviadas  dentro de livros; que a escrita é uma herança; que a minha família era artista.Hoje escrevo melhor as dores porque conheço as dores dela, do machismo dos homens que ela conheceu, da estreia do feminismo na família... Hoje a mãe sabe que eu gosto de escrever sobre os enroscos, então me liga para fofocar, ou para alimentar o filho. No entanto, pensei noutra coisa agora: ela ainda não me contou as histórias das paixões como me contou das violências. Quase todas as mulheres da família dela: cuidaram da casa, dos filhos e foram impedidas de viver suas paixões. As que quiseram viver, tiveram de fugir. Minha mãe fugiu a vida toda. Sua primeira fuga foi para estudar. Foi quando se formou, se apaixonou e teve filhos. Sua segunda fuga foi quando nós, filhos, fomos para o mundo. Ela nos deu a liberdade para conquistar a sua também. Hoje viaja mais, sai com as amigas para dançar, faz teatro e, ano passado, foi atriz num curta-metragem que rodou no cinema da cidade. Uma mulher perigosa demais.Tenho certeza de que amou mais do que eu sei, que sentiu tesão, se apaixonou. Tenho dúvidas se já traiu, mas torço para que algum dia me ligue e me conte uma história sobre traição. “Conte-me mais sobre os desejos”, eu anoto no caderno para me lembrar quando a mãe me ligar. N’outro dia, me disse que os homens não se interessavam mais por ela. “Mas está tudo bem”, ela comentou, “não preciso mais dos homens”. No fim, eu acho mais provável é que os homens tenham medo da mãe. Uma mulher que teve quatro filhos de parto natural não quer um frouxo ao seu lado. Domingo passado mandou mensagem no grupo, estava no cinema, ia ver três filmes de uma mostra. Os desejos dela. Não me lembro da mãe falar de homens como fala de cinema. Ela nunca disse “Eu queria aquele homem” quando falava da juventude. Ela já disse mil vezes: “Eu odiava aquele homem”. “Conte-me sobre os desejos”, está escrito no bilhete ao lado, enquanto espero uma ligação da mãe, essa mulher perigosa. Pois têm histórias que eu queria escrever antes que ela fugisse de novo.

Mulheres perigosas demais

Mãe Candura foi a pessoa mais importante de Mundocaia, nos anos em que atuou. Atraía multidões, chegando em pequenos grupos ou em grandes caravanas, incrementando o turismo religioso. Vinha gente de toda parte e de todos os extratos sociais. De pobres, arrastando as alpercatas, a celebridades internacionais, voando em jatinhos hiperfálicos.Mística eclética, Mãe Candura operava responsos, adivinhações, jogava búzios, cortava cartas, lia sorte, fazia amarrações amorosas, desatava destino, tirava coisa feita e, principalmente, curava enfermos desenganados. Hasteando a bandeira da humildade, erigiu um império de milhões de dólares, com donativos espontâneos e participações no faturamento de hotéis e restaurantes fomentados pelo seu business.Já idosa, e muito doente, previu o dia da própria passagem para o sobrenatural, que ela dizia conhecer com intimidade. Ao se despedir, disse aos presentes que partiria, na dianteira, para preparar o abrigo de cada um. Mas ela só se comprometia com quem fosse a seu velório e assinasse o caderno de presença.Considerada uma pessoa milagrenta, o cortejo foi o maior evento que Mundocaia viu. Mais gente até do que no enterro do prefeito, que morreu enforcado, por conta das dívidas da prefeitura, depois de gastar com obras sociais os bens de seu próprio patrimônio.O velório ocorreu no salão quadrilátero da câmara dos edis. Puseram na entrada um caderno de presença. A polícia organizou a fila para os admiradores se despedirem e assinar o caderninho a fim de garantir um cafofo na eternidade.Houve excesso de coroas. A funerária, vendo a escassez de flores e ramos, ligou para os floristas da vizinhança para ajudarem no atendimento. Mesmo assim, as flores não deram nem para o cheiro. As pessoas cortavam as inflorescências dos passeios, dos jardins, das portas das casas, dos campos ao redor da cidade, improvisando coroas abrutalhadas. Apesar da carência de espaço, para acomodar tanta gente e arranjos florais, as celebrações transcorreram sem entreveros, não fosse a cara de gaiata da defunta.Todo mundo chorando. Quando via a cara da morta, caía na gargalhada. E não havia constrangimento de polícia ou de parente para recobrar a compostura. Até o padre, na hora de celebrar a missa de corpo presente, mais ria do que rezava, com todo mundo fazendo coro de riso, como se rir fosse agora um novo jeito de encomendar a alma.Disseram que foi por culpa do harmonizador facial de defuntos, um bêbado zombeteiro. Outros acharam que a careta de zomba era premonição de algum acontecimento, nefasto ou auspicioso, que estaria por vir. Mas o próprio padre passou pano, dizendo que a falecida gostava tanto das pessoas que, mesmo diante da morte, não queria ver ninguém lacrimoso e triste.Nos dias seguintes, a conversa que mais se ouvia nas famílias, nos ambientes de trabalhos, nos botecos, nas rodas de gente à toa era sobre a assinatura no tal caderno. Pessoas diziam-se penalizadas por outras porque, ela que assinou estaria salva, com o ajeitamento pelas mãos da senhora dos milagres, enquanto amigos e parentes queridos, que deixaram de assinar, estariam nos caminhos da perdição eterna, ou mesmo virem a queimar-se no mármore do inferno.Antes que completasse um mês da morte da curandeira, disparou a morrer gente, como se uma pandemia invisível atacasse Mundocaia. A pessoa estava bem de saúde, cuidando de seus afazeres e, do nada, caía morta, sem marca de pedrada ou de bala perdida.O pavor incendiou a cidade. O delegado entrou no caso. Depois de algumas linhas de investigações frustradas, pediu para ver o tão falado caderninho de Mãe Candura. Não foi sem espanto que descobriu: as mortes extraordinárias aconteciam na ordem crescente das assinaturas do malfadado documento. De nada adiantou a descoberta. O delegado declarou, de pronto, não ter jurisdição, autoridade nem competência para frear a maldição instalada.

O caderninho de Mãe Candura

O rapaz gritava que seu sonho havia sido destruído, que sua vida tinha acabado, algo assim. Não sei. Não quero saber mais. Alguém havia batido em seu carro. Não sei se era novo, se era usado, se era um presente dos pais, se foi comprado após anos de trabalho. Não sei. Não quero saber mais.

Foi mais um desses vídeos que a gente vê por aí. Vê, mesmo quando não quer ver mais. As pessoas riam, comentavam: garoto mimado. Faziam comentários ainda mais cruéis. Não lembro. Não quero lembrar mais.

Eu também rio de imagens de pessoas que desconheço, às vezes em situações tragicômicas. Até acho graça de memes, de piadas mórbidas e de mau gosto, inspiradas nelas. Já dizia Luis Fernando Verissimo que “o homem é o único animal que ri dos outros”. Eu também sou humana. Portanto, rio. Hoje, menos. Já ri mais.

Talvez eu devesse ter rido daquele vídeo, mas achei foi profundamente triste, porque daquela vez não julguei. Embora julgue, como na canção Esses Moços, de Lupicínio Rodrigues: “Esses moços, pobres moços/ Ah, se soubessem o que eu sei”. E sei que carros podem ser consertados. Mas há coisas que não podem ser consertadas mais.

Eu não ri porque me vi ali, reagindo, desesperada, diante de um pequeno acidente de trânsito, ou pior, dando birra por coisas ainda mais banais. Poderia ter sido eu o objeto do vídeo da vez.

Quem nunca teve uma reação desproporcional a um acontecimento ordinário que dê o primeiro grito. Quem jamais estourou ou esteve prestes a estourar em uma crise de nervos porque a torrada caiu com a manteiga para baixo? A queda da torrada foi a última gota de bile para o transbordar de Um Copo de Cólera (leia-se o livro de Raduan Nassar, que tem filme adaptado).

Uma amiga, “supitando” de estresse, uma vez parou o carro no meio da rua, desceu e começou a gritar. Outro amigo xingou até a quinta geração de uma mulher que parou o carro a sua frente em uma via de mão única e que acenava. Ele imaginou que ela estava justificando o fato de impedir sua passagem, mas soube, assim que se aproximou mais, que ela tentava avisar que a porta do passageiro estava aberta. Ele enrubesceu de vergonha e remorso, e decidiu que precisava aprender a lidar com sua raiva.

Assista-se aos filmes Relatos Selvagens e Um Dia de Fúria. Quem nunca teve medo de não conseguir se conter e dar um grito despropositado em pleno escritório, na sala do chefe ou em um auditório lotado? Esse parece ser um medo universal, como o sonho de estar nu no meio das pessoas.

Todos em algum momento vivemos alguns segundos no limiar e corremos o risco de ultrapassá-lo, de fazer uma besteira de que vamos nos arrepender nos segundos seguintes ou pelo resto de nossas vidas. Até crimes são cometidos assim, vidas tiradas. Danos que não podem ser reparados. Brigas após uma fechada no trânsito ou rusgas entre vizinhos por causa de sacos de lixo que resultam em tragédias.

Às vezes palavras que deixamos escapar nesses momentos limítrofes, num dia ruim, detonam grandes confusões. E como também disse Luis Fernando Verissimo, “o homem é o único animal que fala mais do que o papagaio.” Frequentemente nas piadas com papagaio, ele se dá mal no final das histórias. O que espera a gente que fala ainda mais, até pelos cotovelos?

Já dei cada bom dia a cavalo. Perdi tantas chances de guardar metros de língua dentro da boca. Se não me lembro de todas as encrencas em que me meti por causa disso é porque não quero lembrar mais. E sobretudo agora que há câmeras por toda parte, celulares engatilhados, ai de quem se destemperar, entornar o caldo, rodar a baiana, descer do tamanco, perder as estribeiras, armar barraco. Será o sujeito do próximo vídeo a viralizar. E seu dia ruim vai se tornar um dia eterno.