Ele, o homem mais rico do mundo, estava na calçada do outro lado da rua. Vestia uma bermuda e uma camiseta pretas. Usava meias e tênis também pretos. Abaixou-se com movimentos um tanto quanto desengonçados para amarrar o cadarço de um dos tênis. Para isso, deixou no chão um pequeno aparelho que eu não pude distinguir o que era. Depois da amarração também desajeitada, apanhou o aparelho e atravessou a rua.Entrou no açougue onde eu aguardava um dos funcionários preparar meus pedidos. Passos largos, meio bamboleantes. Pegou sua senha, foi chamado logo e, depois de cumprimentar todos os açougueiros, batendo o punho fechado no punho de cada um deles, mostrou um pequeno papel onde estava escrito algo. Também não pude divisar as palavras no papel.Que figura! – eu pensei, reparando nos seus cabelos já grisalhos. Devia ter mais de 60 anos. Se eu estivesse à procura de um personagem para algum exercício de ficção, tinha um ali bem ao alcance dos olhos e da imaginação. Reparei mais uma vez no aparelho que ele segurava. Parecia ser uma daquelas TVs em miniatura que há um tempo atrás a gente via nas cozinhas ou nas portarias de edifícios. Ou seria um radinho de pilha?Mas quem hoje ainda anda por aí com uma dessas miniaturas, depois da invenção dos celulares? Trabalharia como porteiro em algum prédio ou quem sabe na portaria de algum estacionamento, responsável por controlar a entrada e saída de veículos?Eu já estava apertando a tecla do “e se...?”, de que falam tão bem escritores como Ítalo Calvino e Rosa Montero. Eu poderia imaginar uma história a partir da imagem tão singular daquele homem. Teria uma vida discreta, anônima, mas sensível e plena em sua simplicidade, como a personagem Biela do livro Uma Vida em Segredo, de Autran Dourado, ou como Felicidade de Um Coração Simples, de Flaubert?— O que mais? – perguntou o açougueiro.— Dois quilos de carne moída, separados em pacotes de 250 gramas, por favor.— Mamãe não pôde vir. A senhora me ajuda a...?— Oi. Não entendi.— A senhora me ajuda a escolher a mandioca? Mamãe não veio comigo hoje e...— Ele quer que você ajude a escolher um pacote de mandioca. Todos esses aqui são bons – me explicou uma mulher que também aguardava por atendimento.— Ah sim! Eu não como mandioca, então não sei.— Todos esses são bons – acudiu mais uma vez a mulher, que não devia estar tão distraída pelo “e se...?” quanto eu.Ele pegou um dos pacotes no freezer e, mesmo eu não tendo sido capaz de ajudá-lo, abriu para mim um grato sorriso de dentes irregulares.Só então notei que, apesar dos cabelos já esbranquiçados, ele tinha a dicção um pouco atrapalhada, a expressão de uma criança e a alegre inocência infantil que faz entabular conversas com desconhecidos em açougues.— Você gosta de modão?— Bem... eu....Quis dizer que não gostava muito, mas achei que não só seria descortês para com aquela súbita cordialidade, como ele não me deu sequer tempo para responder. Aproximou o aparelho do meu rosto e clicou em um botão. O som do modão se espalhou pelo açougue por alguns segundos.— Meu amigo baixa essas músicas para mim do YouTube e salva num pen drive que eu ponho aqui – e me mostrou o aparelho que era na verdade não uma caixinha de som em formato de miniatura de TV.— Mais alguma coisa, senhora?— Por hoje é só, obrigada.Fomos juntos para o caixa. Ele foi o primeiro a pagar.— Mamãe não pôde vir hoje e eu vim sozinho. Mas ela anotou pra mim.— Aqui está. Dois quilos de suan de porco e um pacote de mandioca.Depois de pagar, ele cumprimentou a moça do caixa com a batidinha de punho fechado e mais uma vez se dirigiu a mim.— Você sabia que eu sou milionário?— É mesmo?— Sou. Eu até hoje tenho a minha mãe. Sou o homem mais rico do mundo. Ela não pôde vir hoje comigo, mas eu vim.E não era que é? Mais rico do que um “e se...?”.