Ainda hoje aquela primeira impressão do mar me visita em sonhos, vejo arder o sol que batia sobre a areia brancaNaquele tempo, o menino que fui andava sempre agarrado à avó Cecília. Aos seis anos de idade e na ausência da genitora, morávamos em Garanhuns com meu tio homônimo e tia Luzia. Em um fim de semana, minha avó me levou a Recife, onde passamos alguns dias antes da viagem para Anápolis, onde minha avó conseguira uma vaga para mim no orfanato — o Abrigo, como diziam.Foi naquele fim de semana que o menino que vive nas minhas memórias teve seu encontro apaixonado e definitivo com o mar de Boa Viagem.Ainda hoje aquela primeira impressão do mar me visita em sonhos, vejo arder o sol que batia sobre a areia branca, e a maresia chegando como um chamado antigo. Meu primo Ozivam, risonho e bronzeado, me ergueu nos ombros e caminhou pela areia.— Vamos, Bebeto, o mar não morde.Suspenso naquele gesto de confiança, vi o mundo se abrir em ondas e claridade. Quando a espuma me tocou pela primeira vez, algo me atravessou como uma vertigem luminosa — o medo e o êxtase confundidos. Os ombros do primo eram minha segurança, e foi assim que o menino recebeu seu primeiro batismo, um batismo pagão de sal e espanto.Diante da vastidão azul, o menino estancou — o rumor das ondas parecia chamá-lo como uma senha secreta, e ele sentiu, como quem reconhece algo perdido, que aquele movimento sem fim o pertencia.Anos depois, lendo o poeta uruguaio Mario Benedetti, compreendi o que o menino vivera:O mar esse evangelho sobre o qual se diz Jesus caminhou com sua graça.Foi isso: o mar me embalara como uma graça recebida, e deu início a uma conversa íntima comigo, como um milagre que jamais terminaria.Voltei ao Recife já adulto, para trabalhar. Era assessor num banco, e o presidente, um pernambucano, era homem político improvisado na gestão da Caixa, que sempre voltava nos fins de semana à sua casa em Olinda. Marcos Freire, que de chefe tornou-se amigo, muitas vezes mandava seu motorista me buscar, até mesmo quando estava com a família na praia, porque gostava de conversar em torno de um uísque com água de coco e pedia resumos das minhas leituras. Depois de sua morte em um acidente aéreo, voltamos para Goiânia.Hoje, retorno ao Recife para uma semana com minha esposa e amigos queridos. Para nossa alegria, temos a chance de ficar na varanda do hotel que oferece uma visão única do mar e da praia de Boa Viagem. O mesmo mar, o mesmo céu, o mesmo horizonte — e, no entanto, tudo muito diferente.A avó Cecília já partiu há muito tempo. As casas mudaram de donos e a praia perdeu parte do seu silêncio entre tantos arranha céus. O menino envelheceu e agora abriga novos sonhos e projetos.Mas, em certas manhãs, quando a luz recorta o horizonte e a memória se acende como um espelho, o menino que fui retorna e ouve novamente o chamado do mar.E, então, compreendo: não foi apenas uma lembrança de infância, mas um pacto.O mar me adotou naquele dia — e sigo viajando para reencontrar o menino que nele se reconheceu e que ainda vive dentro do homem que me tornei.