O ponto de largada de Netuno foi a praia, uma praia paradisíaca no Ceará. Branco de olhos azuis, nasceu sob uma boa estrela e à sombra de uma bela árvore. Com o bumbum peludo virado para a lua. Tinha casa, comida e família, que até hoje envia, pelas redes sociais, notícias e fotos de suas mães e irmãs. Hoje elas vivem no Estado de São Paulo, enquanto ele, horizontes expandidos, migrou para o Planalto Central. As circunstâncias felizes de seu nascimento já o fadaram à felicidade e à prosperidade.Aurora Luísa teve sorte igual desde o nascimento. Com traços de raça bem definidos, comprida e de pernas curtas, nasceu num lar convencional. Embora meio doentinha no princípio, recebeu atendimento médico e medicamentos a tempo de crescer saudável e com grande alegria. Uma cearense amostrada.Já Cariño foi uma vítima de abandono e certamente de maus tratos. Conheceu a vida perigosa das ruas. Não sei quem foi seu pai ou mãe. Um filho do mundo, chegou a nossa casa para roubar os restos de comida dos outros. Mestiço de branco com amarelo, olhos agateados, foi desde sempre arredio e amedrontado. Nós o amansamos aos poucos, com cautela, e o gesto e a palavra carinho.Netuno teve acesso a boa educação. Aninhou-se atrás do computador do meu filho e de lá acompanhava as videoaulas dele durante os dias de pandemia, e jogos, muito jogos. Dormiu em bercinho de cristal, digo, transformou em seu berço a fruteira de cristal da Bohemia sobre a mesa da sala, até não caber mais. Depois migrou para a minha mesa de trabalho, onde completou sua educação e inclusão digital.O estrabismo acentuado não foi impedimento. Desenvolveu habilidades de abrir travas de portas e janelas, e caminhar sobre fogão quente. Escreveu até crônicas, reunidas em livro, em coautoria comigo. Só não compareceu à noite de autógrafos porque é caprichoso e temperamental, mas participou de todo o processo, da preparação à revisão dos originais, da separação dos exemplares ao envio, e até mandou sua assinatura com firma quase reconhecida para autografar os livros.Desde pequeno – embora bicho não viaje, meu Deus! – andou de avião, se não na primeira classe ou em jato particular, porque nessas nem eu que me considero gente nunca viajei, já acumulou algumas milhas de viagem.Aurora também é viajada. Veio comigo na cabine, já rodou uns tantos quilômetros pelas estradas do Ceará e de Goiás, tem até cadeirinha própria com direito a cinto de segurança, e é uma viajante nata. Adora passear. Basta abrir a porta do carro que ela entra, ávida por novas aventuras.Já o pobre Cariño nunca se recuperou do trauma do abandono. Esfomeado, tem um apetite infinito e pede comida toda vez que me vê. Tornou-se obeso e avesso a qualquer mudança de casa ou viagem. Tem pavor de visitas, e medo até de mim e de meu filho. Submete-se às ordens e caprichos de Netuno, o rei dos mares e da casa, que cheira e degusta a comida antes mesmo de Aurora, exceto quando o prato é carne. Às vezes leva umas surras para manter-se em seu lugar de submissão.Cariño se afasta para deixar o rei passar, mete-se sob a cama e enquanto canto houver para se esconder. Aurora a tortura querendo brincar. Quando pequenos, eles até se divertiam juntos, engalfinhando-se, e dormiam de conchinha. Mas agora ele é um adulto, eternamente apavorado, e ela, eterna criança.As condições de seu nascimento e primeira infância deixaram nele marcas indeléveis, trauma que comprometeu sua aprendizagem e o impediu de ter sucesso e destaque nas páginas de jornais, livros e do mundo.Essas histórias biográficas de gatos e cão são só pra dizer que o mérito não é dos bichos, que nem entre eles existe a tal meritocracia, embora haja muitos humanos latindo, unhando e se mordendo para defender isso.