Diante da passagem do tempo, neste fevereiro do meu aniversário, o poema de Mário Quintana (Seiscentos e Sessenta e Seis), me motiva a fazer estas reflexões. Ao transcrever o poema na minha última crônica publicada aqui, pensei que já havia feito o balanço devido e que a fatura estava paga, consciente de que enxergara os limites que Cronos nos impõe. Não é verdade. O verso inicial “A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa” é uma excelente definição que nos leva a refletir profundamente sobre o sentido do acumulado dos dias, sob a influência dos versos do poeta que conheci na minha juventude em Porto Alegre. Hoje é como se eu continuasse deixando cair aquela “casca dourada e inútil das horas”.Não creio ter havido em meu período de cinco anos de vivência na capital gaúcha tantas horas inúteis. Com certeza, vivi algumas dessas horas com casca dourada de cujo tesouro não soube aquilatar seu devido valor.Alcançar o marco de 69 anos me leva a pensar de quanta coisa podia ter abdicado, deixado de lado, diante de momentos dourados que se apresentavam para que fossem bem vividos. No casamento, por exemplo, poderia ter sido melhor pai, melhor marido; e na sociedade, melhor cidadão. Mesmo com todas essas falhas, no entanto, os descaminhos da vida não me impediriam de manter a certeza de que a liberdade só viria pela educação e a proximidade com a cultura. E aí me empenhei muito.Quando eu era menino, já possuía instintivamente o germe da reflexão, mas me submetia aos deveres que me eram impostos, recolhendo-me aos pensamentos próprios. Eduquei-me formalmente, mas principalmente, aprendi por intermédio dos livros. Hoje os tenho aos milhares. Quando alguém os vê nas estantes em minha casa e pergunta: o senhor os leu todos?, me consola lembrar de Roland Barthes, o pensador francês que dizia ser esta uma deselegância similar perguntar a uma dona de casa zelosa se já usou toda a porcelana que tem em seu armário. Sim, os livros foram minha tábua de salvação. A poesia, o barco principal. No dia do meu aniversário, reli o trecho do Livro X das Confissões de Santo Agostinho, intitulado O Palácio da Memória, onde ele afirma ser ali que “estão guardados tesouros inumeráveis e deles me aproveito, antes que o esquecimento os absorva e os sepulte”. E sobre o valor do tempo afirma ainda que “cada gota de tempo é preciosa”.Se o santo desejava usar tais gotas para pregar o Evangelho, eu, com menos virtude, pretendo usá-las para viver este ciclo com sabedoria.Porque não são infinitas as gotas de tempo que nos restam, por isso mesmo é que sorvo cada uma delas com mais ardor, como um vinho raro. A vida se exaure e não há tempo a perder. É hora de deixar de lado relacionamentos tóxicos ou que muito pouco agregam e buscar a companhia daqueles que merecem o melhor do nosso afeto. Nada de correr contra o tempo como já fiz tanto, mas olhar com atenção redobrada a vida que nos rodeia diariamente e nos inspira a entender o novo, o diferente, o essencial.Por isso, é sensato do mínimo tirar o máximo e nos relacionamentos procurar manter elevado o nível de respeito e admiração Tendo as palavras de Santo Agostinho como guia, vou garimpando o rico solo das lembranças, animado para este novo ciclo, onde espero gerar outro tanto de bens para o tesouro da memória, enquanto uso as preciosas gotas do tempo.