Apesar do nome que remete a uma cor ideologicamente sequestrada, Amarela é uma arquiteta com pendores de esquerda. Feminista, não teme recomeços sempre que a vida pede. Quando a notícia do seu divórcio após duas décadas de casamento se fez pública, Amarela se tornou testemunha involuntária da crueldade do tempo contra os ex-namorados da juventude. Alguns, indiferentes ao próprio estado civil, viram no passado a esperança para lidar, no presente, com o tédio característico dos cinquentões. No WhatsApp dela, houve uma procissão de tiozinhos vindo com aquela clássica.— Oi, sumida.Não foi só o massacre dos anos no viço daqueles senhores que impressionou Amarela. Diante da alternativa, envelhecer parece inteligente. O que não merece o mesmo adjetivo é a estratégia para o cortejo de uma mulher madura, sensível ao belo. As abordagens oscilavam entre agressões ao idioma e uma escalada acelerada e unilateral da libido. Não há método anticoncepcional mais eficiente do que isso.Mas sempre sobra um tanto de afeto e, guiada exclusivamente por esse mau conselheiro, Amarela se manteve num diálogo que evoluiu para um enigma. Comovido pela imerecida atenção, o ex mandou a foto de um terreno verdejante, com águas barrentas ao fundo. Tanto podia ser um lago quanto enchente, visto que a paisagem era do Rio Grande do Sul. Amarela já dedilhava um pedido de socorro à Defesa Civil quando a legenda irrompeu no celular.— Meu quintal vem...Assim mesmo, com reticências selvagens e sem vírgula, numa construção que mergulha sujeito e verbo no mais profundo caos sintático. Amarela interrompeu a conversa aí, carregando consigo a imagem mental de um quintal que se mexe, num vaivém sem dizer aonde. Foi uma bênção não saber se aquilo era de fato um convite.Amarela, não esqueçamos, é uma progressista pequeno-burguesa. Não seria coerente, portanto, rechaçar trabalhadores braçais e de baixa qualificação nos aplicativos de namoro - aqui recorro a essa palavra, namoro, mais por dificuldade semântica para definir um relacionamento digital do que pela firmeza de intenções dos casais que ali se formam.Se ficou chateada quando soube que o rapaz com quem iniciara uma troca de mensagens era vigilante, isso se deve mais a questões morais do que de preconceito classista. Durante o cerco, o cara mentiu ser um músico, revelando uma sagacidade na construção de personagens. Estavam justificadas as mensagens que varavam as madrugadas, quebrando a monotonia reinante nas portarias.Numa manhã, em meio à ressaca dessas mensagens noturnas, o músico-vigilante escreveu num tom diferente do habitual. Estava mais solene e carnalmente menos afoito.— Sabe de uma coisa? Faltou gás e meu irmão, que está com meu dinheiro, vai chegar só à tarde. Pode me fazer um Pix de 80 reais?Amarela despediu-se educadamente, mas não abriu o aplicativo do banco. Em vez disso, bloqueou o número do captador de recursos das madrugadas. Começou ali o cultivo da castidade como gesto de rebeldia contra a precariedade do envelhecimento dos homens nascidos na década de 1970, mas também de proteção do patrimônio.Tudo sem deixar de celebrar a sorte de ter rompido o namoro antes que o preço do botijão estivesse na indecência que está hoje.