Minha mina tem intolerância acentuada contra um tipo de produção audiovisual que, na classificação particular dela, se define como “de sustinho escroto”. É um terror traiçoeiro, porque nos convida a baixar a guarda como espectador quando, de repente, algo bizarro irrompe na tela, nos fazendo saltar do sofá. Há um traço de masoquismo em quem se coloca voluntariamente nesse papel de ser assustado por um diretor sádico.Talvez eu sofra inconscientemente desse mal, porque foi desavisado que vi há pouco Cassandra, na Netflix, e gostei. Saí dos seis episódios impressionado com o que os alemães conseguiram extrair de uma minissérie “de sustinho escroto”. Dá para pensar bastante quando a pulsação baixa e a gente identifica a origem do absurdo da trama.Cassandra é uma mulher encaixada nos padrões sociais dos anos 1970. Cuida da casa, da comida, dos filhos, para que o marido, cientista, brilhe como executivo de uma empresa de tecnologia. Tão devotada ao casamento que é, submete-se como cobaia a dois experimentos dessa firma. Ao último, sobrevive apenas como memória de computador, confinada num robô. Nessa carcaça metálica, estabelece um reinado doméstico e despótico.Cinquenta anos depois, Samira, uma artista plástica, muda-se com o marido e os dois filhos para a mansão aparentemente abandonada de Cassandra, fugindo de um trauma familiar. Bem, basta dizer que o robô é encontrado, ligado e uma tensão, com direito a muito “sustinho escroto”, vai se suceder.A minissérie pode ser olhada sob a perspectiva de um Black Mirror germânico, na medida em que nos leva a pensar no quanto de intimidade entregamos em troca das facilidades oferecidas pela tecnologia. É como se a vulnerabilidade fosse uma condição inarredável para quem quiser viver num mundo conectado. Muita filosofia ainda vai ser feita até que, daqui a uns 100 anos, estejam debochando da nossa ingenuidade nesses idos de 2025.Mas há um fator menos etéreo e mais sociológico digno de reflexão na história. Tanto Cassandra quanto Samira são mulheres existencialmente encolhidas pelos privilégios dos maridos. É uma dinâmica que não se altera, mesmo no decurso de meio século na narrativa. Horst, o marido de Cassandra, é uma mente curiosa, inovativa, mas doentiamente escrava de aparências, a ponto de sufocar os filhos em favor da própria imagem. David, “conge” de Samira, é um escritor de literatura policial comercialmente bem-sucedido, mas pusilânime. Seria só um traço de personalidade, perdoável, se essa covardia não sabotasse a sanidade de Samira.O sustinho nada escroto de Cassandra mora aí. Não é o fantástico da trama que nos horroriza, mas o que ela tem de real, de verossímil. Quantas mulheres estão agora, enquanto escrevo este texto, reduzidas em suas aspirações, rotuladas de emocionalmente instáveis, jogadas umas contra as outras, quando, na verdade, estão apenas asfixiadas pela autoestima de homens medíocres?*De 2018 para cá, tenho atravessado a rua quando vejo alguns amigos de infância vindo em sentido contrário. Os caras estão ressentidos com o desfazimento da farsa sexista que os mantinha, e viraram uma metralhadora de estupidez. Não veem mais o Jornal Nacional, se orgulham de não ler livros e jornais. Admitem alergia à arte. Dentro em breve, não vai restar nem série “de sustinho escroto” para eles. Oxalá não usem o Zap para espantar o tédio comigo.