Edival Lourenço

Toda doença amplia-se, à medida que se tem o diagnóstico. A dissonância cognitiva sempre existiu, mas à medida que a Psicologia Social consegue identificá-la, a patologia vai pipocando em toda parte. Sem distinção de cultura, religião ou poder aquisitivo. Desde os think tanks (centros de reflexão), passando pelas comunidades cultas dos centros urbanos, pelos subúrbios e campesinos não estão livres dos delírios coletivos. Das as religiões monoteístas, passando pelas de deuses plurais e até mesmo nas panteístas incipientes, é possível diagnosticar o mal. O sintoma começa com uma pessoa e amplia-se até atingir massa crítica, com desdobramentos desastrosos. Há 40 anos, por exemplo, o pastor norte-americano, Jim Jones, foi revelado com a ideia de conduzir as ovelhas de seu rebanho, o Templo do Povo, para estabelecer uma comunidade pentecostal cristã, sem vícios nem pecados, longe da civilização pervertida, na selva da Guiana, sob o sugestivo nome de Jonestown (Cidade de Jones, ou Joneslândia). Por alguma dissonância, que começou com o líder ou por ele encampada, os religiosos resolveram acelerar o processo do encontro com a glória eterna, num suicídio coletivo. A grande maioria tomou um ponche de frutas com veneno. Alguns escolhidos ficaram para cuidar do rescaldo. Quem sobreviveu ao suicídio foi assassinado a tiros ou facadas. Os executores suicidaram em seguida. Numa operação trancham, morreram 918, entre homens, mulheres, velhos, adultos e crianças. Vários ramos da especulação tentaram explicar o assombroso evento. O mais curioso, talvez, seja o da Numerologia. 918 mortos. 9+1+8=18. 18=1+8 que é =9. Nove é um número aziago e cabalístico. É o número das musas, dos círculos seráficos, dos nove dias e nove noites das dores do parto e dos círculos infernais. Simboliza também os três mundos trinários (3x3=9) de céu, terra e inferno. Na mitologia chinesa, Huanti-ti não é apenas uma pessoas, mas uma confraria de 81 e o Tao-te king conta com 81 capítulos, (9x9). Assim como no cristianismo em que Deus é constituído de três pessoas, há os três mistérios (gozosos, dolorosos e gloriosos) no Rosário da Virgem Maria, máximo divisor comum do número nove. Em todas as séries simbólicas, a representação do fim de um ciclo é o aspecto mais relevante. Daí a catástrofe do rebanho de Jim Jones foi catalisado irresistivelmente pelas injunções do número nove.Possivelmente a Inquisição da Igreja Católica, que vendeu indulgências a supostos hereges e acusou mulheres de bruxaria, matando-as na fogueira, tenha nascido da cabeça de uma pessoa, com dissonância cognitiva, e contaminado a maior confraria religiosa da época. A Segunda Grande Guerra, com os horrores do nazismo, do holocausto e das bombas de Hiroshima e Nagazaki, nasceu da cabeça de um líder dissonante e carismático que, por fim, contaminou grandes grupos, seja por crença religiosa/ideológica, seja por conveniência econômica. O mundo vive um momento de profunda distopia cognitiva, com o pensamento da direita populista radical, com o fascismo na garupa. O surgimento das redes sociais, com a criação de bolhas de realidade paralela, é uma espécie de catalisador tecnológico do número nove, semelhante ao que supostamente exerceu influências sobre o fim de ciclo da seita de Jim Jones. Guerras pipocam aqui, ali, acolá e alhures, frutos de ambições estúpidas ou fatalistas. Segundo os contabilizadores de contendas, há120 em curso. 1+2+0 = 3. Múltiplo de 9, com seus miasmas nefastos. Muitos brigões levam ogivas nucleares a tiracolo. Desavenças como Rússia e Ucrânia, Índia e Paquistão, Israel e Irã podem escalar e arrastar outras potências nucleares para o conflito, querendo provar que suas bombas são mais eficazes. Os guerreiros sempre falam em paz, que nem a seita de Jim Jones que, em nome da salvação, encontrou o suicídio como prêmio. Podemos até nem cair, mas estamos à beira de um abismo, com claques desgraçadamente batendo palmas, de dentro de suas bolhas.

Ogivas nucleares a tiracolo

Crônicas e Outras Histórias

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Matéria - Crônicas

CRÔNICAS E OUTRAS HISTÓRIAS

Quem por teimosia insiste em ficar na vida, vai percebendo com desgosto a inviabilidade de certas ideias bonitas. Persevera nelas não só por romantismo, mas por uma crença quase tola no aperfeiçoamento da humanidade. A turma transformou em clichê uma fala (com o perdão do pleonasmo) sábia do Eduardo Galeano: “Para que servem as utopias? Para que sigamos a andar”.Fiquei pensando nisso ao ler Os Supridores, de José Falero, incluído entre os 25 Melhores Livros Brasileiros do Século 21, segundo a Folha de S.Paulo. Listas são subjetivas, e só com subjetividades podem ser rebatidas, de modo que não chegamos a lugar algum questionando-as. Mas Falero é um de fato um hábil criador de fábulas que, embora resvalem em didatismo, que reacionários se apressarão em chamar de militante, servem para reacender nossa paixão juvenil por soluções inviáveis. Em tempos de cinismo, de descrença na força conjunta popular, cresce o valor estético desse eletrizante romance.A história narra a existência miserável de dois repositores de supermercado, Pedro e Marques. Trabalham em escala 6x1, gastam duas horas por dia no transporte público e, quando chegam em casa, só lhes resta ânimo para comer, mal, e dormir sonos aflitivos. Mas em vez de ir de arrasta para cima em vídeo de coach, Pedro gasta o tempo no ônibus lendo Marx. E se dá conta do absurdo que é o acúmulo de dinheiro pelo patrão, em contraste com o massacre que são seus dias.É aí que Falero solta a veia de fabulador. Num diálogo, Pedro faz Marques perceber que um homem pode fazer uma camiseta sozinho, mas não um prédio. Se alguém aparece dono de um imóvel com muitos andares, fatalmente explorou o trabalho alheio, sem que a riqueza gerada tenha sido justamente compartilhada. Ao explorado, cabe uma fração minúscula. O acúmulo à beira da indecência só é possível nesse esquema perverso, que foi normalizado, tomado como regra, defendido até por quem morre à custa dele. Outra passagem com contornos de fábula versa sobre um avião em queda, situação em que a força de vontade para sobreviver pouco importa. Um trabalhador condenado a rotinas torturantes é meio como esse passageiro de um voo rodopiando rumo ao solo. Vai se estatelar, queira ou não.Mas Pedro (ou seria Falero?) já viveram um tanto para perceber o caráter gelatinoso dos ideais coletivos. Não há pobreza que os solidifiquem. Por que um padeiro abriria mais uma padaria, se fosse para dividir o lucro igualmente com o empregado, sem o qual não conseguiria ampliar as fornadas? Por que assumir riscos se não for pensando em fortunas para sustentar um estilo de vida patético mas invejado? É por isso que Pedro e Marques, em vez da revolução proletária, resolvem salvar a si mesmos vendendo maconha. O que se sucede nessa jornada dupla, entre o crime e a CLT, vale muito a pena ler. Observem como o autor transita entre a oralidade dos subúrbios de Porto Alegre, onde nasceu e vive, e a voz erudita e elegante do narrador.No fim da história, quando Pedro faz um inventário das desilusões trazidas pelo esforço para existir com alguma dignidade, Falero costura a derradeira fábula. Compara a vida a uma sopa, que ora a gente salga demais, “tá botado, não tem como tirar”. Mas a sopa só fica pronta quando a gente morre, então, até lá, temos tempo de “pica umas batata e joga ali”. É mais ou menos como as ideias bonitas e inviáveis, que servem para nos “devolver a esperança e o orgulho”. Sem elas, a vida está condenada a ser uma rala e insossa salmoura.

Da paixão por soluções inviáveis

Na década de 1970, ainda não tinha coragem de dizer: “Vou ser escritor”. Morava no Rio Grande do Sul e trabalhava como escrivão, levando a vida em ritmo monótono, salvo apenas pelos momentos livres em que podia ler muito e conhecer obras literárias que me levavam para cima, fugindo de uma rotina nada agradável.

Mais à frente, voltei a Goiânia como escriturário da Caixa Econômica, para o trabalho estafante do mundo bancário, que consumia minhas energias e deixava pouco espaço para a literatura, embora me permitisse rascunhar algumas linhas de vez em quando.

Entre idas e vindas, este foi um dos meus diversos retornos a Goiânia. Quando saí de Anápolis e vim para Goiânia estudar Física, conheci uma garota que está comigo há 50 anos. Hoje penso que foi um grande trunfo conhecer e namorar a melhor das duas moças da Escola de Engenharia.

À essa altura, minha irmã adotiva – Dora – já havia voltado para Divinópolis, sua terra natal, e mantinha comigo uma febril correspondência. Suas cartinhas tão bem escritas me traziam um calor diferente do vivido em Goiânia. Falavam de um clima serrano e de uma cidade distante de todos os hábitos goianos.

Às vésperas do meu noivado, decidi ir a Divinópolis visitar minha irmã mineira. Foram dias de trem e ônibus. Eu me lembro de seguir viagem lendo uma seleta de poemas de Cecília Meireles, mantendo o hábito de ler poesia iniciado na biblioteca do Colégio Couto Magalhães, hábito que jamais abandonei.

Chegando a Divinópolis, soube que havia uma poeta na vizinhança. O nome dela: Adélia Prado. Só posso provar que tudo aconteceu pelos registros de minhas retinas cansadas e por uma foto em que apareço, jovem magricela, ao lado de minha irmã Dora.

Dois anos depois, já casado, Dora me envia um livro de Adélia (Cacos para um Vitral) em que consta esta dedicatória:

“Para o Adalberto vão estes ‘cacos’.

Espero que goste deles e me queira bem. Seja muito feliz!

O abraço melhor da Adélia Prado. Divinópolis, 23.12.80”.

Recebi outros livros sempre com esse “abraço melhor” da poeta Adélia que passei a ler meticulosamente e com paixão.

Em 1986, ainda cheio de insegurança, lancei um livrinho com apoio do escritor Brasigóis Felício e do editor amigo Anatole Ramos – sob o título Frágil Armação.

Citei Adélia.

“Meu destino é miúdo –

é um caquinho de vidro na poeira”.

Neste julho de 2025, quase 40 anos depois, trouxe a poesia de Adélia ao palco do Sesc no evento Vozes Femininas. E para falar sobre essa grande poeta reli seus livros, mergulhei novamente no rico universo de sua poesia, desta vez com o olhar de quem já ultrapassou a marca dos 70, mas mantém o coração batendo forte e sonhando muito...

Foi uma grande alegria reler e falar de Adélia. Sua poesia nos ensina a sonhar alto, como no canto Xavante, citado como epígrafe de meu primeiro livro:

“Com o sono eu sonho

Durmo e sonho.

Os outros vão cantando.

Eu sonho para tornar felizes

Os outros que cantarão meu sonho.

Eu durmo e sonho o que os outros cantarão”.

Cacos para um vitral

Um deles, com seu sangue latino, assumiu seus pecados. O outro se recusou a ter aquela velha opinião formada sobre tudo. Ney Matogrosso e Raul Seixas integram aquela geração de ouro de nossa música, na qual estão tantos nomes e que já entraram pelos 80 anos, e, cada qual ao seu modo e simultaneamente, mostraram que a arte, ao ser subversiva, revela toda sua potência. Ney e Raul nunca se deixaram paralisar pelo sucesso, jamais abdicaram do desafio da reinvenção. Também por isso eles continuam a inovar.A cinebiografia Homem com H, que traz a interpretação incandescente de Jesuíta Barbosa na pele de Ney Matogrosso e já pode ser assistida na plataforma Netflix, e a série Raul Seixas: Eu Sou, que estreou no Globoplay, com Ravel Andrade vivendo o Maluco Beleza, são dois trabalhos magistrais que fazem justiça ao legado que essa dupla de artistas ofereceu ao Brasil. Um tesouro que inclui, claro, canções inesquecíveis, shows memoráveis e estilos únicos, mas, sobretudo, atitudes essenciais para entender que a luta contra o arbítrio, a caretice, os preconceitos e o reacionarismo, hoje tão em voga em nossa sociedade, é feita de criatividade e decisões corajosas.Ney Matogrosso é o primeiro grande performer da nossa música quando os meios de comunicação de massa, como a TV, passaram a influenciar os gostos culturais. Em plena ditadura, no pior período dos anos de chumbo, ele eclodiu como uma tempestade no cenário musical brasileiro, liderando o grupo Secos e Molhados. Aquela era uma proposta ousada. Usando de sua sensualidade nata, não se coibindo em fazer do seu corpo uma arte, carregando na maquiagem, nos requebros insinuantes e na voz afinadíssima de um contralto raríssimo para um homem, Ney Matogrosso estraçalhou convenções, liquidou regras e mandou para o diabo qualquer tipo de conservadorismo.Depois, em carreira solo, continuou a chocar os mais puritanos, apresentando-se de forma libertária em alguns espetáculos – em um deles, usava um tapa-sexo –, assumindo abertamente e sem complexos sua orientação sexual, tendo um romance público com Cazuza. Ele colocou combustível na criatividade da geração do Rock Brasil dos anos 1980, ao mesmo tempo em que já era considerado o maior intérprete brasileiro. Claro, ele enfrentou agressões, ofensas e boicotes, mas isso não o fez parar.O baiano Raul Seixas, por sua vez, trilhou um caminho alternativo, compondo canções – muitas delas em parceria com Paulo Coelho – que falavam de sua realidade fora dos padrões burgueses. Ele era muito associado a um ideário hippie, que falava de paz e criticava o sistema, mas que também mergulhava em diversos tipos de drogas. Ele experimentou muitas, mas certamente a pior de todas foi a bebida alcoólica, que arruinou sua saúde, sendo uma das responsáveis por sua morte precoce, em 1989, aos 44 anos. Aquela postura, entretanto, foi extremamente influente para tantos artistas que vieram depois.O rock brasileiro não seria o mesmo sem nomes como Raul e Rita Lee, que também não obedecia ordens. Durante a ditadura, Raul Seixas não chegou a ser preso, como vários de seus amigos, mas era vigiado de perto. Ironicamente, ele só foi detido uma vez, quando o confundiram como um impostor de... Raul Seixas. Sim, os produtores de um show não o reconheceram quando ele chegou para se apresentar e acabou sendo levado para uma delegacia sob a acusação de tentar se passar por Raul Seixas.Ney continua a encantar, com uma vitalidade que desafia o tempo e a biologia. Raul continua a ser solicitado constantemente – “Toca Raul!” – e nomes como Maria Bethânia, Nando Reis, Pitty fazem questão de atender esses pedidos. E o próprio Ney Matogrosso interpreta Metamorfose Ambulante e A Maçã em alguns de seus shows. Subversivamente, como esses dois gigantes são e merecem ser cultuados.

Ney, Raul e o valor da subversão

“Você tem certeza de que está em Londres?” - alguém poderia perguntar, ao me ver, pelas fotos, sentada num toco no meio do mato ou ao notar que os jardins da cidade parecem mal cuidados, cheios de ervas daninhas.

“Já não se fazem mais jardins londrinos como antigamente”. De fato já não se fazem. Em minha primeira manhã em Londres, já percebi algo diferente: os jardins das casas vizinhas ao apartamento de minha amiga Vera eram algo exóticos. Tinham flores lindas mas também uma alegre massaroca de pragas, o que muito me agradou, eu que pelo Ceará andei cultivando os jardins sustentáveis de praga de Madame Natasha.

Pois não é que, peripatética com Vera mais tarde, ela me mostrou as ervas daninhas nos canteiros públicos e me contou que a administração pública proibiu que elas sejam arrancadas.

“É para garantir a vida das abelhas, que polinizam, contribuindo para a biodiversidade e para que a gente tenha flores e frutos.”

“Uau! Borboletas me mordam! Que doce isso.”

Enquanto no Brasil o povo anda desmatando mesmo, os ingleses andam cultivando mato.

E desde que Vera me revelou essa novidade passei a reparar no exótico de todos os jardins e parques que visitamos, e até dos museus, que, pasmem, também são museus de mato.

Quando estávamos a caminho do Big Ben e da Tower Bridge, a ponte que andou fugindo de nós, duas senhoras inglesas avistaram e nos mostraram, do outro lado da rua, Camilla, a rainha consorte. Ela saía de uma visita ao Garden Museum. Eu quase gritei “God save the Queen!”, enquanto Vera, mais íntima, 18 de anos de vida londrina, também quase chamava: “Camilinha, Camilinha!”.

Acabamos convencidas pelas súditas fiéis da rainha de que a exposição no tal Museu do Jardim era imperdível. Como não seria se a própria majestade estivera lá?

Qual o quê! Que decepcionante em termos de flor. Tinha só umas rosinhas murchas e um cheirinho de velório. Faço justiça: havia muitas fotos e a rica história da jardinagem no Reino Unido que não pudemos apreciar porque o museu já estava fechando.

Mas ainda tivemos o prazer de descobrir ao lado do prédio um jardim de pragas aberto à comunidade e repleto - adivinhem de quê - delas mesmas, as rainhas do pedaço.

E como se não bastasse, fomos voando de ônibus até outro parque, o Avondale, porque Vera queria porque queria me mostrar o Hotel de Abelhas.

Minha viagem em Londres tem consistido, além de procurar pontes que andam, em seguir abelhas, encontradas também no Regent’s Park e em Greenwich.

Tenho visitado muitos museus também, claro, mas é tão grande o zum zum zum, há um enxame tão grande de gente do mundo todo, que estou em dúvida se nasci mesmo para viver em colmeia. E venho preferindo a natureza viva às naturezas mortas dos museus.

Sorte é que Londres, além de alqueires de formigueiros humanos, tem parques enormes, onde podemos parar de andar um pouco (temos caminhado uma média de 20 quilômetros diários), observar os patos nadando plácido nos lagos e outras espécies da fauna local, como esquilos e raposinhas. Tivemos até ocasião de comer amoras reais, que decerto existem em abundância também graças a ela, a rainha. God save the bee!