O culto ao poder do indivíduo em se ver livre do massacre da pobreza e prosperar exclusivamente pelo esforço próprio é um mercado em alta. Charlatões se gabam por arrecadar “sete dígitos” em horas vendendo segredos de como ficar milionário pela força do mindset, quando, a rigor, nessa roda só gira o lucro dos vendedores de ilusões. Alguns coaches, entediados com a fortuna amealhada, se lançam na vida pública com ego transbordante de virilidade. Aí perdemos todos, não só os que compram os cursos.Fui um recorrente comprador de eletrodomésticos por impulso. Já amanheci com encomenda de espremedores de laranja, mesmo sem gostar de suco, só por ter espantado o tédio zapeando o controle remoto da TV a cabo. Minha biografia de consumidor me desautoriza a classificar de otário quem se matricula nas escolinhas de aspirantes a rico da internet. A lorota do marketing é persuasiva, tudo parece imperdível e exclusivo demais. Há também uma questão que escapa a quem come no mínimo três vezes ao dia, por vezes contando calorias, porque, em termos de alimentos, está mais para o excesso do que para a escassez. A democracia e qualquer outro valor abstrato só é defendido se traz algum benefício palpável. A extrema-direita não tem resposta para nenhum problema concreto, porque se autoproclama virtudes com sacrifício alheio. Jamais cede um direito, enquanto nega aos demais. Também inventam perigos inexistentes, para que possam nos socorrer, não raro em nome do divino.Se a coisa vai mal, como tem ido nos últimos anos, o papo deles é sexy. É muito confortável negar as mudanças climáticas, mesmo com o quintal em chamas. Não precisamos fazer nada. Só elegê-los, para que terminem o serviço de sepultar a democracia, filha dessa política na qual não se enxerga mais tanto valor.É algo preocupante, sobretudo quando jovens engrossam a fileira do desencanto. A juventude é uma fase complicada. Lembrei de Norwegian Wood, romance de Murakami que não cessa de comover gerações de meninos e meninas, porque roça sentimentos universais dessa travessia para a vida adulta. No livro, o narrador e protagonista Toru Watanabe vive essa fase da existência imerso num luto difuso, mas dilacerante. O suicídio do amigo Kizuki, aos 17 anos, lateja em todas as páginas, trazendo implicações inclusive na forma como ele enxerga o mundo.Vem da introspecção imposta pela morte a indiferença de Toru à efervescência naquele final dos anos 1960. Há um enfado contra os estudantes às voltas com militância estudantil nas universidades de Tóquio: “As ideias eram brilhantes e eu nada tinha contra o conteúdo, mas as frases careciam de poder de persuasão. Pensei com meus botões que o verdadeiro inimigo daquele pessoal era a falta de criatividade.” Por vezes, a ladainha de quem se vê moralmente superior realmente cansa.Se a literatura é a organização da experiência do vivido, talvez a ficção de Murakami ofereça luz. Precisamos reaprender a falar com paixão sobre a beleza dos sonhos e das conquistas coletivas, longe dos quais nada de transformador acontece no mundo. Não para que saiam por aí usando camisa do Che e boné do MST. A pretensão desse chamamento é bem mais modesta.É apenas trazer mais gente para cuidar da democracia quando ela estiver sob ataque dos mercadores das falsas esperanças.