Venta. “É preciso sair da ilha para ver a ilha”, diz José Saramago em seu Conto da Ilha Desconhecida. Será que também precisei sair de meu lugar de origem, Goiás, Goiânia, para vê-lo? Ou, mais metaforicamente, precisei sair fora de mim para enfim me ver?E depois de ficar por quase quatro anos em outro lugar, Ceará, Vila de Jericoacoara, meus olhos também haviam se habituado, o visto se cristalizou em rotina, e precisei novamente sair para enfim voltar a vê-lo, assim como a mim?Quando fiz umas poucas aulas de remo em canoa polinésia, eu via Jeri de fora, a partir do mar. Ou quando subia no alto do Morro do Serrote, a contemplava de cima. Ou quando escrevi um livro inspirado na Vila, eu passei a habitá-la e vê-la de dentro, mas dentro de um outro lugar, o da imaginação, um lugar absurdo, mas aprazível. E assim que concluí a escrita, tombei na realidade e suas agruras, já que não existem paraísos ou que mesmo eles são também infernos.Voltei a viver em Goiânia, mas retorno a Jeri pelo menos uma vez ao ano. Cá estou agora, inspecionando as areias, procurando lugares e rostos familiares. Mas Jeri já não há mais. Como no dizer de Drummond, “Minas não há mais”.Não há mais a mesma Jeri. Nunca há. “Nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio”, disse Heráclito. Nenhuma mulher, no mesmo mar, porque o mar já e outro e outra a mulher.Venta. Saí para a antes habitual caminhada pela praia, até alcançar o Arrombado, local em que as águas do mar que entram pela praia e lhe correm paralelas nele desembocam novamente. Pois Arrombado não há mais, ou por enquanto não há, até que voltem as chuvas. Porque tudo muda o tempo todo e em Jeri, terra de areias, parece que mais rápido.Tantas coisas e pessoas já se foram, e outras acabam de chegar. Se ainda permanecem algumas pedras, quase todas já se moveram, exceto as muito grandes e pretéritas. E não fica um grão de areia imóvel sobre outro, porque o mar, o vento e a chuva só os querem transportar.Venta. Como já escrevi em meu livro Histórias Encantadas entre Cordilheiras de Areia, há muitas Jeris ou, conforme o nome pagão com que a batizei, muitas Anhangás. E talvez aqueles grãos de areia que há pouco estiveram nas praias e dunas andarilhas, estejam agora, como na canção Reconvexo, de Caetano Veloso, sobre os automóveis de Roma.Venta. Perdoe-me, leitor, se estou mais uma vez falando em voz alta, mas a atividade de cronista é isso, como disse o escritor Cristóvão Tezza na sua coletânea de crônicas A Máquina de Caminhar cuja leitura, aliás, concluí aqui.Encontrei, ao acaso, o livro do curitibano, nascido catarinense, pouco antes de para cá viajar. Considerei uma feliz coincidência, já que meu livro de quase cearense, nascida goiana, também andou pelo sul do País. Foi vencedor do Prêmio Cruz e Sousa de Literatura, promovido pela Fundação Catarinense de Cultura, na categoria romance nacional. Livros é que são máquinas de caminhar e não sua “Esteira Sherazade”.Perdoe, novamente leitor, se conto vantagem e misturo temas nesta crônica, mas é que venta muito. E o vento inventa, sopra, insufla e me embaralha tantas ideias, que fica difícil me ocupar de apenas uma. Aliás, o vento desfolhou e espalhou as páginas das Histórias Encantadas durante nossa Jeri que Lê, ação anual do projeto de incentivo à leitura Livros que Andam que eu e voluntários desenvolvemos há cinco anos.Durante quatro horas, lemos em voz alta em público, sem parar. Este ano fizemos nossa ação na Praça da Igreja de Pedra, onde expusemos livros presos em varais e sob pedras, para que não fossem carregados pelo vento, o que foi em vão, a ponto de eu sair correndo atrás das páginas embaralhadas do meu próprio, como se estivesse revivendo a ficção.