Quando me tornei escritor, eu já surfava há anos.

Quero dizer que, quando publiquei o meu primeiro livro, eu já escrevia há quase duas décadas. Mas é isso que as pessoas dizem sobre a escrita, que é escritor quem publica livros. Isso não é verdade.

Por isso é tão difícil dar dicas às pessoas que querem ser escritoras. Pois nunca sei se elas querem escrever ou publicar livros. Publicar livros, no sentido literal, é fácil. Com ou sem dinheiro, em um mês você consegue se tornar um escritor. Já no sentido literário, publicar um livro é um pouco mais difícil. Você precisa escrever.

E o que demora mesmo é a escrita.

Lembro do dia em que passei a me chamar de escritor, e foi justamente depois que publiquei o meu primeiro livro. Eu já era escritor. Por bem ou por mal, pela crítica ou não, eu já escrevia há 20 anos. Debruçava-me horas sobre o prazer que eu sentia, e que continuo a sentir, de escrever nos dias bons e ruins; de escrever para sentir o prazer que só quem escreve sabe como é. Naquela época, eu trabalhava com propaganda e em todos os intervalos que eu tinha, do café e almoço, eu escrevia. Escrevia até quando não podia, quando um job pesado ainda estava por fazer sobre a mesa. Mas eu escrevia. E à noite, em casa, eu escrevia mais. Foi assim que me tornei escritor, escrevendo.

Mas foi só depois de ter publicado o meu primeiro livro que, no check-in de um hotel em que eu me hospedaria para participar de uma feira literária, escrevi pela primeira vez, no campo de “Profissão”, a palavra “Escritor”.

Fico até emotivo em me lembrar daquele dia e dos seguintes, quando passei a dizer que eu era escritor. Foi quando passei também a ouvir as piadas dos amigos, as críticas dos “críticos”, os apelidos... Isso faz dez anos, do meu primeiro contrato para publicar um livro; e 25 anos, do meu primeiro contato com as minhas palavras próprias.

Hoje, o que me deixa aperreado é de ver gente que não escreve, o escritor de livros, dar dicas sobre escrita. Ou pior, dar cursos sobre o que ele não faz, escrever. Tem muita gente boa dando cursos, eu poderia fazer uma lista delas aqui. Mas gente que não escreve, gente que, uma vez na vida publica um livro, não sabe o que é escrever. Essa vaidade de quem quer a palavra “Escritor” no currículo, mas que mal escreve o currículo, e fala de caminhos milagrosos para se tornar escritor, me dá raiva demais.

Mas me deixa respirar um pouco...

É escritora quem escreve. Mesmo que sem o tempo para se sentar e escrever como gostaria, é escritora quem não consegue não escrever e de algum jeito escreve; quem engana o chefe, chega atrasada, desmarca compromissos para escrever. Se você é essa pessoa, parabéns. Ignore o que as pessoas que escrevem pouco dizem sobre a escrita. Elas mal sabem escrever.

Como é certo que não há praia sem mar, não há escritor sem escrita. O problema é que algumas pessoas vão à praia uma vez, tiram onda e depois deixam o lixo todo por lá. Aí a gente que vive na praia precisa pegar um saquinho e limpar a sujeira dos outros.

Mas também é isso que quem mora de frente ao mar precisa fazer, cuidar da praia.

E pegar onda todo dia.

Pegar onda todo dia

Crônicas e Outras Histórias

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Matéria - Crônicas

Só podíamos nos ligar aos finais de semana, a partir das duas da tarde do sábado, quando os valores das chamadas eram de um pulso só.

Pareço um estrangeiro escrevendo agora sobre as ligações de antigamente. Penso nos jovens que me leem e tentam entender o que quero dizer com um “pulso” numa chamada telefônica. E mais: penso nos que tentam entender o termo “chamada telefônica”. Eu devo parecer um velho escrevendo assim.

Mas isso não me incomoda.

E começo a pensar ainda mais nas pessoas que não conheceram os aparelhos analógicos que eu conheci. E em como o tempo dos acontecimentos mudou de lá para cá.

Mas, voltando:

Isso que eu vivi foi há 25 anos. Uma paixão. Só podíamos nos ligar aos finais de semana. Eu tinha 15 quando me apaixonei por uma garota que morava na Bahia. Possivelmente, nos conhecemos em uma sala de bate-papo dos antigos canais do UOL. Ou do Mirc. Não posso me explicar tanto a vocês, jovens de hoje, ou essa história não vai ter fim. Então façam as pesquisas, procurem no Google ou nas enciclopédias (será que elas ainda existem?) e descubram como o mundo, há 25 anos, acontecia de um jeito diferente. Ou como cada coisa tinha o seu tempo.

Mas, voltando:

Possivelmente foi nas salas de bate-papo que nos conhecemos. Naquela época, não sei por que, usávamos apelidos (a norma era que fossem todos ridículos): Los_Hermanos, M0rpheu, Waka_waka… Não usávamos fotos nos perfis, pois as fotos não existiam como existem hoje. E me canso só de pensar em como explicar tudo a vocês: as máquinas fotográficas eram caras; as fotos analógicas custavam uma fortuna e eram reveladas em lugares específicos, como uma “fujiótica”; demoravam para ficar prontas; para serem usadas nos computadores, era preciso um scanner, e scanners eram caros e grandes; as fotos tinham tamanhos imensos, que mal cabiam nas memórias dos computadores; os computadores travavam constantemente nesse processo; as fotos não cabiam nos e-mails; e as salas de bate-papo ainda não tinham o recurso de subir fotos, pois os arquivos eram grandes, levavam tempo, um tempo caro, e “gastavam” toda a internet. Naquele tempo, as coisas aconteciam de um jeito realmente diferente.

E aquilo não me incomodava.

Mas, voltando:

Depois de um tempo, passamos a trocar cartas. Isso mesmo, cartas. Era uma tecnologia que a gente tinha: escrita à mão, enviada para longas distâncias. Demoravam a chegar, mas podiam ser enviadas com fotos e pequenos presentes feitos por nós; iam em envelopes que a gente também podia escolher o tamanho e a cor, como quem hoje escolhe o fundo de tela de uma mensagem de aplicativo.

Passamos mais uns dois anos, eu e a “minha garota”, trocando fotos por cartas. Não éramos virtuais, como somos hoje, mas nunca chegamos a nos ver de verdade.

Talvez a paixão tenha acabado quando me apaixonei por alguém mais próximo. Ou ela. Ou talvez por uma questão de economia. Ou porque as tecnologias avançaram tanto que roubaram o que a gente tinha de mais bonito: o tempo de cada coisa.

Agora tudo acontece ao mesmo tempo. E isso, sim, me incomoda bastante.

Cada coisa tinha um tempo

Alguns desenvolvedores de inteligência artificial argumentam que os chatbots — as máquinas que emulam conversas “humanas” com usuários — podem ajudar a combater a solidão. Tenho refletido sobre isso e sobre a forma como estamos nos relacionando com o outro.

Em Agonia do Eros, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han escreve que O eros se aplica, em sentido enfático, ao outro, que não pode ser abarcado pelo regime do eu. No inferno do igual, que iguala cada vez mais a sociedade atual, não mais nos encontramos, portanto, com a experiência erótica, que pressupõe a transcendência, a radical singularidade do outro. (...) O desaparecimento do outro é um sinal da sociedade que vai se tornando cada vez mais narcisista; a sociedade, esgotada a partir de si, não consegue se libertar para o outro. É uma sociedade sem eros. Vivemos, segundo ele, um momento de erosão do Outro, processo que caminha de mãos dadas com a narcisificação do si-mesmo.

Chul Han entende o eros como força que move o indivíduo a transcender seu ego e se ligar ao outro, de modo a experimentar a alteridade — a qualidade de ser outro, de ser distinto.

Metido a pensador, julgo que a alteridade tem sido vítima de atentados em nome do que o sul-coreano chama de inferno do igual. A singularidade, a subjetividade, o “diferente de mim” é hoje um triste moribundo. No leito ao lado agoniza também o eros.

Mas quem atenta contra a dupla? O sujeito narcísico. Aquele que, conforme define o filósofo, não consegue estabelecer claramente seus limites, e que, por isso, desaparecem os limites entre ele e o outro. Para esse sujeito, o mundo se lhe afigura como sombreamentos projetados de si mesmo. Ele não consegue perceber o outro em sua alteridade e reconhecer essa alteridade. Ele só encontra significação ali onde consegue reconhecer de algum modo a si mesmo.

A homogeneização — o tal inferno do igual — e o narcisismo adoecem a sociedade e impactam negativamente as relações interpessoais. De fato, o que muito se nota, hoje, é a ânsia de quem fala por fazer valer a sua perspectiva em detrimento da perspectiva do outro, além de um desejo, ainda que não declarado, de que todos sejam, ajam e pensem como ele, independentemente de quem seja, como age e pensa. Esse indivíduo acalenta o terrível desejo de que não haja o outro enquanto outro, mas somente o outro enquanto ele. É de fazer inveja a Narciso.

O que esse tipo de pessoa ainda não entendeu é que não há eu sem tu.

Um outro filósofo, Martin Buber, ao refletir sobre a alteridade no livro Eu e Tu, já dizia que “somente aquele que se volta para o outro homem enquanto tal e a ele se associa recebe neste outro o mundo. Somente o ser cuja alteridade, acolhida pelo meu ser, vive face a mim com toda a densidade da existência é que me traz a irradiação da eternidade”.

Sintetizo a ideia de Buber da seguinte forma: a eventual morte da alteridade não é um assassinato; é um suicídio. Não há mundo — e vida, portanto — sem a alteridade do outro. Sem o outro, torno-me ainda mais narcísico. Minha concha vira meu mundo.

E onde esse mundo vai parar? Não sei. Melhor perguntar ao amigo chatbot.

Pela sobrevivência da alteridade

Um dia surgiu um muro separando os homens e as mulheres de cada lado da cidade. Ele era todo vigiado, lembrava bastante o Muro de Berlim. Artilharia pesada para caso alguém tentasse atravessar para o lado do gênero oposto. O susto foi gigante. Como conseguiram separar casais, famílias e amigos da noite para o dia sem que ninguém visse? Como fariam para a reprodução da vida naquela cidade? As perguntas iam se amontoando conforme os minutos passavam.

No lado dos homens, começaram a queimar pneus. A baderna foi se generalizando enquanto bradavam “Devolvam nossas mulheres! Devolvam nossas mulheres!” Mas não encontraram qual autoridade poderia derrubar aquele muro.

Já no lado feminino, elas se lamentaram por estarem longe dos cônjuges, mas a bagunça foi menos adrenalizante. Uma ou outra tentava puxar um coro de revolta, mas a maioria até que estava bem tranquila, tendo em vista a estranheza da situação.

Passadas as primeiras horas, os homens resolveram organizar uma partida de futebol. A Pelada dos Machos! Se divertiram como nunca, correram na lama, suaram e, ao final do dia, se permitiram dormir sem tomar banho. Afinal, “Agora não tem ninguém para me vigiar”.

As mulheres, do outro lado do alto muro, começaram o dia sem saber muito o que fazer. Não precisavam mais vincular seus dias aos dos homens, muito menos se auto-atribuir tarefas para compensar a folga deles. Se juntaram e fizeram uma Confraria das Garotas. Beberam, se divertiram e não precisaram se conter, já não havia mais qualquer marido para julgá-las.

No segundo dia, os homens acordaram sujos da pelada e sem café da manhã. Não esperavam que a situação se perduraria, pensavam que as mulheres não poderiam sobreviver sem eles. Então, se juntaram na maior casa daquele lado do muro e assistiram tutoriais no YouTube de como preparar a primeira refeição do dia... Mas ficou muito ruim.

Se levantando com a tranquilidade de um monge budista, as mulheres saíram para aproveitar o dia. Não tinham mais que encostar em uma roupa que não fosse sua, ainda mais freada, pelos antigos cônjuges não serem bons em controlar seus intestinos.

No terceiro dia, veio o grande desespero. Os homens já estavam há três dias sem comer, se sentiam famintos e inúteis por não saberem ligar um fogão. Saíram para as ruas para protestar. Entoavam cantos clamando que não nasceram para essa vida. “Não é porque somos imprestáveis que merecemos esse castigo.”

O derradeiro momento foi quando eles avançaram para o alto muro, buscando derrubá-lo. As mulheres, que estavam mais bronzeadas e felizes do que nunca, ouviram a algazarra. Elas se agruparam e, unindo forças, deram a sustentação que o muro precisava para ficar de pé. Quando um dos policiais do alto do muro agradeceu, questionou porque elas fizeram isso. Uma delas respondeu: “Quem planta sacanagem, colhe solidão”. O muro ficou ali, de pé, e só um dos lados foi feliz para sempre.

Um muro

Gosto bastante de A Floresta Petrificada (1936), de Archie Mayo, mas imagino o quão melhor seria se filmado antes da implementação de fato do famigerado Código Hays, que “dessexualizou” o cinema hollywoodiano a partir de 1934. Após uma série de escândalos nas primeiras décadas do século 20 e a recorrência de filmes tidos por muitos como violentos e obscenos (não por acaso, os melhores produzidos até então, como o Scarface, de Howard Hawks), a imagem de Hollywood estava arranhada. Assim, para aliviar a pressão política e evitar ingerências externas, os donos dos estúdios optaram pela autocensura, criando a Motion Picture Producers and Distributors of America (MPPDA) em 1922 (atual Motion Picture Association).

Colocaram o presbiteriano Will H. Hays na presidência e as regras de “decência” foram impostas graças ao trabalho do censor Joseph Breen, católico de ascendência irlandesa que capitaneou um departamento criado especificamente para fiscalizar as safadezas fílmicas: a Production Code Administration (PCA). Filmes sem o selo de aprovação da PCA passaram a ter a exibição vetada. Breen também foi um antissemita falastrão até 1939, quando isso começou a pegar mal. Era admirado pela hedionda Silver Legion of America e colaborou com Georg Gyssling, cônsul alemão nos EUA entre 1927 e 1941 e membro do partido nazista desde 1931.

Voltando à Floresta Petrificada, nele vemos Bette Davis caidinha por Leslie Howard, mas não há decotes, coxas expostas ou beijos de língua. O filme se passa quase que inteiramente em um restaurante de beira de estrada, às margens do Petrified Forest National Park, no Arizona. Howard interpreta um escritor fracassado que vaga pelo interior dos EUA. Davis é filha do dono do restaurante e se encanta com o forasteiro. Ele viajou pelo mundo. Ela sonha em ir para a França e se tornar uma artista. Uma complicação externa oferecerá um sentido à existência dele, e também possibilitará que ela realize o sonho de (provavelmente) fracassar com as próprias pernas (ou mãos, sendo uma pretensa artista plástica). Tal complicação envolve bandidos fugitivos chefiados por um Humphrey Bogart sujo e malvado como nunca.

Claro que o filme compensa a frigidez imposta pela censura graças ao texto de Charles Kenyon e Delmer Davies (adaptando a peça homônima de Robert E. Sherwood) e à direção de Mayo, um artesão de primeira. Você sabe que o sujeito dirige bem quando ele consegue fazer com que nos importemos com aqueles personagens, por mais assexuados que eles sejam. Atenção à cena em que um personagem se sacrifica por outro, colocando-se na frente do assassino: “Não vai fazer a menor diferença pra você. Eles só podem te enforcar uma vez”. Eis algo muito bacana para se dizer a um matador.

Mayo dirigiu várias preciosidades na era “Pre-Code”. Há cenas nos filmes dele realizados antes de 1934 que só voltariam a figurar em longas hollywoodianos décadas depois, quando o Código Hays caducou e morreu. Vide Caminhos do Inferno (1930), com o jovem James Cagney devorado pela deliciosamente nariguda Dorothy Matthews. “Pra onde você quer ir?”, ela pergunta. “Eu pensaria em mil lugares se você não fosse casada com o meu parça Louie”, ele responde. Ela, então, tira a aliança, coloca na mão dele e diz: “E agora, pra onde você quer ir?”. Rapaz.