Era uma vez um tio meu, desses sujeitos pastores em plenitude, mas coronéis na essência. Terno de linho, Bíblia marcada com post-its coloridos. Ele falava com fervor sobre como Deus abençoa quem se esforça — geralmente ele mesmo, claro. Entre um sermão e uma bronca desproporcional, cuspia histórias bíblicas sobre colheitas fartas e reinos prometidos, tudo justificando sua coleção de terras e um gosto peculiar por subjugar qualquer alma desavisada que pisasse no seu território.A religião, dizia ele, é a coluna vertebral da sociedade. Mas, na prática, funcionava mais como uma lavagem cerebral com notas de rodapé bem convenientes. Ele nunca reconhecia os privilégios de nascença, nem o fato de que a mão divina que guiava sua fortuna era, na verdade, a combinação de terras herdadas, conexões políticas e a subserviência imposta aos outros pela força. Tudo isso em nome de Deus, claro.Essa crença num destino manifesto — a ideia de que alguns são escolhidos por Deus para liderar, lucrar e viver no bem-bom — é a mesma que moldou a história dos Estados Unidos. Lá, a hipocrisia foi elevada a um símbolo nacional chamado Columbia, uma alegoria de mulher branca, vestida como uma estátua grega, que carregava a tocha da liberdade enquanto pisoteava povos indígenas e africanos. O tal destino manifesto era só a desculpa que precisavam para invadir terras, dominar culturas e se autocelebrar como o povo eleito.Mas isso não está tão longe do tio ou daquele amigo no Instagram que compra um apartamento e agradece a Deus como se o senhor das alturas fosse o corretor de imóveis mais eficiente do mercado. É curioso como Ele parece focar tanto nas transações imobiliárias e tão pouco em redistribuir a renda, resolver a fome ou apagar incêndios na Amazônia. Esse tipo de crença perpetua a noção de que algumas pessoas merecem ter mais do que outras, eternizando a desigualdade num ciclo tão divino quanto cruel.A escravidão é o exemplo mais gritante dessa hipocrisia celestial. Durante séculos, a igreja — que deveria pregar igualdade e amor — justificou a escravidão como um plano divino. Europeus se consideravam instrumentos de Deus, transformando africanos e indígenas em mercadoria para construir um continente. E hoje, a mesma estrutura que ergueram com chicote e sangue continua sendo protegida pela fé na meritocracia divina.A verdade é que essa narrativa de que Deus está lá em cima, gerenciando terras, títulos e financiamentos, é uma estratégia velha e eficiente. Serve para confortar os que têm tudo e calar os que têm pouco. Porque, afinal, se Deus deu, quem somos nós para questionar?Mas a ironia nunca cansa de passear por esses territórios. O mesmo Deus que “dá” apartamentos é o que permite enchentes destruírem casas inteiras nas favelas. O mesmo Deus que guia carreiras de CEOs milionários ignora as filas de desempregados. Essa lógica seletiva é, no mínimo, conveniente.Enquanto isso, o anjo Columbia ainda flutua por aí, reformulado em forma de discursos patrióticos e selfies com vista para o mar. O tio-religioso continua comprando terras, agradecendo a Deus pelo lucro, e punindo os que ousam discordar. E nós, aqui, seguimos tentando decifrar se o destino manifesto é uma obra divina ou só uma desculpa bem articulada para manter tudo como está.