No restaurante, a filha chegou apoiando o pai pelo braço, ajudando-o a se locomover. Na hora de se servir, ela segurava o prato enquanto perguntava, com paciência, o que ele gostaria de comer. Colocava exatamente o que ele escolhia. Almoçaram juntos e foram embora antes de mim.Terminei a refeição e saí logo depois. Já dentro do carro, parada no semáforo da avenida, vi os dois atravessarem a faixa de pedestres. Conversavam e riam alto. De repente, ele se soltou do braço da filha e a envolveu pela cintura. “Chega, agora é minha vez de te segurar, como quando você era criança!”, sentenciou, sorrindo.Dias depois, conversando com uma amiga cujo pai havia morrido recentemente, falávamos sobre a inversão de papéis e a rotina de cuidados com quem já cuidou de nós. “Parece que eles voltam a ser crianças e nós somos as únicas adultas da história. Dão birra, se recusam a comer, a tomar banho, a tomar remédio”, desabafou ela.Confesso que, por muitas vezes, cuidando dos meus pais, também pensei que os papéis haviam se invertido. Até o dia em que me deparei com um vídeo da médica paliativista Ana Cláudia Quintana Arantes explicando que essa ideia é uma ilusão, porque nenhum idoso volta a ser criança.Apesar da fragilidade do corpo e das peças pregadas pela mente, eles carregam experiências e aprendizados que o tempo não apaga. “O olhar que eles têm sobre nós, ninguém mais tem, porque nossos pais são as únicas pessoas que nos conhecem desde o primeiro minuto em que abrimos os olhos”, explica a médica.Desfrutar desse olhar diferenciado talvez seja nossa maior missão durante a velhice de quem nos gerou. “Peça que contem histórias da sua infância, da sua adolescência. Pergunte como te enxergam, como te percebem. Ninguém mais dará a leitura que seus pais têm de você e da sua história mais remota”, sugere ela.Intuitivamente — pois ainda não havia assistido a esse vídeo enquanto meus pais estavam vivos — foi o que fiz. Durante uma das internações do meu pai, lembro-me de que ele me olhou fixamente e disse: “Eu jurava que você seria estilista de moda, sabia?”. Caí na gargalhada, intrigada.“Esqueceu dos desenhos que você fazia dos vestidos da Scarlett O’Hara, em E o Vento Levou...? Você me pedia resmas de papel e caixas de lápis de cor, enlouquecida com as roupas da Vivien Leigh. Seus desenhos pareciam croquis!”, contou ele.Eu havia me esquecido. Em segundos, voltei aos meus 9 anos, quando desenhar vestidos era meu passatempo preferido. Adolescente, comecei a customizar roupas da minha mãe — para o desespero dela. Fui muito criativa até os 13 anos. Amava desenhar, pintar, colar. Com a dureza da vida e um lar que se tornava cada vez mais caótico, essa veia artística adormeceu. Ainda assim, foi mágico reencontrar esse traço vivo dentro de mim.Em uma tarde, enquanto ajudava minha mãe no banho, perguntei se ela não se sentia frustrada por ter abandonado a carreira de advogada para cuidar de mim, do meu irmão e da minha avó. Surpresa, ela respondeu com firmeza que não. “Vocês deram sentido a minha vida”, afirmou.“Vocês são minhas maiores fontes de orgulho e alegria. Se eu luto contra o câncer, é para estar um pouco mais com os filhos que iluminaram a minha vida.” Sempre que me lembro disso, meu coração se aquece e qualquer dúvida sobre meu valor desaparece.Não é fácil cuidar dos pais na velhice. Não há como romantizar o cansaço, o medo e a dor de vê-los limitados. Mas, se olharmos com atenção, perceberemos que eles continuam cuidando de nós. Ao nos devolverem memórias, sentidos e pertencimento, ajudam a retirar a poeira do caminho que já percorremos — e nos lembram, silenciosamente, de quem somos.