O título desta crônica é o primeiro verso de uma das mais belas canções de Caetano Veloso, chamada Milagres do Povo. Nela, o compositor e cantor baiano fala da religiosidade de matriz africana e como ela foi importante na constituição de nossa cultura, na resistência ao regime desumano da escravidão e de quão belos são credos como o candomblé e a umbanda, com seus orixás e sua fé.Caetano, que em várias ocasiões já se declarou ateu, mas que mantém uma curiosidade admirável aos sistemas de crença das pessoas, cantou essa música formidável no show que fez em Brasília, duas semanas atrás, dentro da turnê especial que tem feito ao lado de sua irmã, Maria Bethânia, por todo o Brasil. Na mesma apresentação, ele interpretou uma música gospel, feita por um líder evangélico, o pastor Kléber Lucas, fundador da Igreja Batista Soul, no Rio de Janeiro. A música é Deus Cuida de Mim, obra com linda melodia e letra inspirada, que Caetano gravou com o pastor recentemente.Alguns amigos meus que foram ao show estranharam muito essa opção de Caetano. Não acharam muito espontâneo da parte dele esse aceno para um público que é mais associado no Brasil de hoje a uma tendência conservadora e a uma ideologia de direita. Os evangélicos, sobretudo os neopentecostais, compõem uma das bases eleitorais de líderes como Jair Bolsonaro, não raramente apoiando até mesmo seus radicalismos. Pastores com grande exposição midiática, como Silas Malafaia e André Valadão, muitas vezes expõem suas opiniões, algumas delas bastante controversas, sobre política e costumes. Então, por que um ícone da MPB, notório por suas posições progressistas e cabo eleitoral da esquerda há tanto tempo estaria se aproximando do que seria o campo antagônico ao seu?Na verdade, talvez a pergunta seja um falso dilema e o estranhamento o resultado de uma incompreensão do que costuma mover Caetano em suas buscas por inspiração estética e cidadã. Se ele é mesmo ateu – há uma entrevista gravada de sua mãe, dona Canô, católica fervorosa, em que ela duvida dessa falta de fé por parte do filho –, talvez a postura mais aguardada seria a de sequer se aproximar de qualquer tipo de culto, seja de que linha fosse. Mas nunca foi assim. Desde o início de sua carreira, Caetano lançou um olhar muito aberto às manifestações das quais ele mesmo não participa. Ele já homenageou Jesus Cristo, já cantou os terreiros da Bahia, já acenou para a cultura hippie e suas simpatias pelo budismo ou hinduísmo sem que isso lhe parecesse incoerente em seu ateísmo. Mas é justamente aí que está o cerne da questão. O fato de eu não acreditar em algo não deveria significar que eu tenha de combater aqueles que acreditam. Pelo contrário, seria um convite a dialogar para entendê-los, com a esperança de que a recíproca seja verdadeira, sem ódios ou hostilidades, sem que se tente impor valores e premissas como se elas servissem para tudo e para todos.Quando Caetano – que tem um dos filhos evangélico e outro católico, mas que gosta de rituais do candomblé e do hinduísmo – grava uma música gospel, isso deveria ser visto com a mesma naturalidade quando ele canta Mãe Menininha do Gantois, Iemanjá ou a cultura hare krishna. Talvez o ateísmo de Caetano lhe possibilite ser menos dogmático, mais acolhedor à fé dos outros e mais preocupado com a espiritualidade em si e não com preconceitos quanto a credos, não importando quais sejam.Quem não é ateu está precisando ver mais milagres como ele.