Fiquei uns tempos sem trampar. Foi um ócio em algum aspecto involuntário, porque, embora eu quisesse descansar, preciso admitir que o desemprego durou o suficiente para se fazer angústia. Agora, novamente protegido nos braços da CLT, posso compor um inventário sentimental daqueles dias de vagabundagem.Li e dormi bastante, o que não é mau. Cozinhei com lentidão, comi com ardor. Viajei, mais por afeto e menos por Instagram. Deambulei em ensolaradas tardes de quarta-feira, solitário entre os apressados. Gozei um prazeroso aperitivo de aposentadoria. Gosto de trabalhar, de me sentir útil e respeitado, da satisfação de criar coisas em conjunto. Mas, destoando um pouco da postura reinante na minha geração, que herdou essa loucura de nossos pais, não confundo vida com trabalho. Enxergo valor além das horas remuneradas.Há porém uma questão que não se encerra em vagabundagens temporárias, dessas com hora para acabar por força da necessidade de sobrevivência. Teria sido tão legal mergulhar em contemplações eternas se a aposentadoria fosse para valer? Estou para dizer que sim, mas sei perfeitamente que ajo sob fraqueza. A idealização nunca é uma boa conselheira, porque só se manifesta quando estamos sufocados pelas grandes maldades da vida adulta. Cada vez que me pedem para fuçar no Excel ao entardecer de sexta-feira, por exemplo, fico rogando pela velhice num balneário uruguaio. Como serão os invernos por lá, é algo que nunca me ocorre. Só vou saber quando o frio que vem lá do Sul, umedecido pelo Atlântico, soprar nas rugas do rosto.Tenho refinado a percepção sobre o valor do prazer no tempo, ou seja, a paixão que sentimos sobre situações redentoras que só existem em nossa cabeça. Devo isso a Haruki Murakami. O romance Ao Sul da Fronteira, Oeste do Sol é um tratado sobre a idealização, que não se dá apenas quando as coisas vão mal. Por vezes, fantasiamos quando tudo flui com mansidão.Porque, ensina Murakami, o vazio é intrínseco à condição humana. Não há meios de preenchê-lo, mesmo com uma felicidade estável e totalmente submissa aos padrões da sociedade. “Onde quer que eu vá, sigo sendo eu mesmo. Aquilo que me falta não muda, em qualquer lugar. A paisagem ao meu redor ou as vozes que falam comigo podem mudar, mas continuo sendo apenas um ser humano incompleto”, diz o japa, na tradução de Rita Kohl.No caso do protagonista Hajime, filho único a quem a existência sempre estendeu tapete vermelho, dono de amores e confortos materiais abundantes, o desconforto chega com culpa. Mas ainda assim ele se comporta como qualquer um nessas horas: fabula o futuro com afetos do passado, como se fosse possível reproduzi-los ao infinito, livres do desgaste dos anos.O próprio nome do livro brinca com os pontos cardeais como metáfora desses movimentos que fazemos não para chegar a algum lugar, mas para fugirmos da angústia de onde estamos. A idealização descortina nossa ingenuidade, nos expõe como tolos, mas talvez tenha razão de ser. “É razoável matar os sonhos, deixando-os como um órgão sem utilidade?”, pergunta o narrador. Como bom romancista, Murakami futuca as dores sem oferecer solução. Só deixa lá, latejando. O bom da CLT é que temos horário de almoço. Vou aproveitar parte desse tempo para tentar decifrar o dilema. Com sorte, chego a uma conclusão antes da glória da aposentadoria.