Eu jamais cometeria esse sacrilégio, a temeridade de cogitar emular o maior cronista de todos. A única coisa que posso fazer é admirar sua intensa capacidade de ser genial em textos curtos sobre o cotidiano, que ora falavam de passarinhos, ora lembrava da guerra, numa forma inimitável, incomparável, insuperável. Mas decidi dedicar este texto ao grande escritor, espécie de inventor (ou reinventor) desse híbrido entre literatura e jornalismo.Acabo de ler a surpreendente biografia Rubem Braga: Um Cigano Fazendeiro do Ar (Editora Globo), de Marco Antônio de Carvalho – capixaba como o cronista –, que ficou na minha estante por inacreditáveis dez anos. Devorei a obra de 600 páginas com rapidez por conta das qualidades da obra – que o autor não pôde lançar, falecendo pouco antes de ela chegar às livrarias, em 2007 –, mas, sobretudo, pelo fascínio que o personagem em questão exerce, mesmo 35 anos depois de sua morte. A vida cheia de surpresas, perigos e amizades únicas de Rubem Braga foi bem diferente da melancolia de sua morte rápida, causada por um câncer de laringe.Nascido em Cachoeiro do Itapemirim, Rubem foi um cidadão do mundo e o mundo coube em seus textos – crônicas, reportagens, cartas, resenhas e até alguns versos –, mas um mundo muito particular, que levava em conta seus olhos de lince para observar, sua eterna curiosidade, sua rabugice conhecida e tolerada pelos outros até com certa ternura. No casarão da família que conheceu a miséria após a Revolução de 1930, nos muquifos em que precisou morar em São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Recife, nos restaurantes e bares de todos os níveis que frequentou e, principalmente, em sua célebre cobertura de Ipanema, ele viveu e contou histórias que até parecem ficção.Sem querer dar qualquer tipo de spoiler, vamos elencar, sem detalhar, algumas de suas peripécias, que incluíam nomes que ajudaram a compor a história da cultura brasileira e até mundial no século 20. Foi correspondente na 2ª Guerra Mundial, disputou uma linda mulher com Fernando Sabino, namorou Tônia Carrero. implicou com Tom Jobim; entrevistou Che Guevara, Sartre e Picasso. Além disso, foi preso em duas ditaduras diferentes, foi chamado de comunista e reacionário, trocou barrigadas numa arenga com Di Cavalcanti, passeou num velho Fiat com Rita Lee, tentou tirar João Cabral de Melo Neto da depressão, foi amigo e depois desafeto de Carlos Drummond de Andrade, trocou confidências com Clarice Lispector. Ainda deu tempo de lançar Gabriel García Márquez no Brasil, hospedar Pablo Neruda, criar duas editoras, ocupar cargos diplomáticos no Chile e em Marrocos, tentar convencer Vinicius de Moraes a abandonar a música e odiar com todas as forças Getúlio Vargas.Rubem Braga conviveu com Cecília Meireles, Mário Quintana, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Érico Verissimo, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Guimarães Rosa, José Lins do Rêgo, Jorge Amado, Ariano Suassuna. Tudo isso com doses de lirismo e alguma impiedade. Um homem cheio de contradições, como a vida. Teve muitas vitórias, como criar um pomar no 13º andar de um edifício, e derrotas, como aventuras amorosas que não conseguiu concretizar, como com Danuza Leão, que preferiu seus desafetos Samuel Wainer e Antônio Maria. Rubem podia ser solidário e vingativo, afetuoso e rancoroso. Nessas oposições intrínsecas, ele escreveu a própria vida como uma crônica do Brasil. Um texto no qual cabiam da admiração pelo programa Os Trapalhões, ao condão de identificar talentos que depois fariam história. Uma mescla que continua a hipnotizar quem o lê em suas crônicas e o conhece um pouco melhor nesta biografia. Não demorem dez anos para lê-la.