Cássia Fernandes

“Fundamental é mesmo o amor/ É impossível ser feliz sozinho”, diz a bonita canção Wave, de Tom Jobim, ao contrário do que muito se tem apregoado por aí, contrariando os discursos tão em voga de que é possível sim ser feliz só. A canção parece se referir especialmente à necessidade de um &nbsp;par amoroso para se alcançar a felicidade, alguém a quem dar as coisas lindas que se tem para dar. Na falta desse par, talvez possamos ser felizes junto de nossas famílias, amigos, colegas de trabalho. Mas completamente sozinhos?

Por mais que os discursos nas redes sociais, de psicólogos, de coachs e de toda sorte de especialistas na Psicologia ou na Ciência da Felicidade tenham reforçado o papel do indivíduo como o único responsável pela sensação de felicidade, podemos mesmo nos sentir felizes quando tantos outros a nossa volta não se sentem?

A felicidade parece ser algo a ser cultivado individualmente, um tipo de habilidade a ser desenvolvida com hábitos como boa alimentação, horas de sono, exercícios físicos, senso de propósito, relações sociais. Teria também bases biológicas, estando ligada à liberação de neurotransmissores como dopamina, endorfina, serotonina e ocitocina.

Mas tendo riscado positivamente todos os itens dessa lista de condições, podemos estar felizes se nossos amigos não estão?

Há muitos anos, muito tempo antes do surgimento das redes sociais e do WhatsApp, quando as comunicações se davam apenas por telefone ou por e-mail, passei um período de três meses em Paris.

Durante essa estadia, eu passeava diariamente pela cidade, visitando museus e prédios históricos, vendo tantas coisas bonitas &nbsp;que havia para ver. No entanto, eu me sentia infeliz porque não havia com quem compartilhar a beleza. Não tinha ao lado sequer um amigo com quem comentar cada uma das descobertas. Corria para as lan houses ou cybers cafés – era o que existia na época – para enviar e-mails a meus amigos em Goiânia, tentando, em vão, relatar o que vivia e principalmente expressar a vontade de que ali estivessem comigo.

Mas eu sabia que, enquanto eu flanava, estavam eles envolvidos em suas próprias questões, enfrentando problemas profissionais, financeiros ou de saúde. Eu não &nbsp;me sentia feliz porque eles não estavam ao meu &nbsp;lado e sobretudo porque não estavam também felizes.

Esse deve ser um dos muitos paradoxos da condição humana. Nosso bem-estar parece depender exclusivamente de nós, do que vai por dentro, do que fazemos com nosso corpo e com nossa mente e, paradoxalmente, &nbsp;depende também do que ocorre e do que os demais fazem com sua própria vida.

Nesse momento mesmo, eu poderia dizer que me encontro em condições ideais para a felicidade, em uma situação financeira confortável, cuidando adequadamente do corpo e do espírito. Porém, vários dos meus amigos não só se encontram em situação penosa, como na cidade, no País, no planeta todo, há tantos que penam, vítimas de injustiças, de crimes, de violência, de miséria, de guerras.

O mundo não está feliz. E talvez a gente precise, portanto, &nbsp;pensar e falar menos em Psicologia da Felicidade, em Ciência da Felicidade &nbsp;do que em uma Sociologia da Felicidade, que se &nbsp;ocupe das condições econômicas, das práticas culturais e mesmo de políticas públicas para fazer não simplesmente pessoas felizes, mas cidades felizes (“felizcidade”), já que, como diz a canção, “é impossível ser feliz sozinho”.

Ser feliz sozinho?

Crônicas e Outras Histórias

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Matéria - Crônicas

Eu jamais cometeria esse sacrilégio, a temeridade de cogitar emular o maior cronista de todos. A única coisa que posso fazer é admirar sua intensa capacidade de ser genial em textos curtos sobre o cotidiano, que ora falavam de passarinhos, ora lembrava da guerra, numa forma inimitável, incomparável, insuperável. Mas decidi dedicar este texto ao grande escritor, espécie de inventor (ou reinventor) desse híbrido entre literatura e jornalismo.Acabo de ler a surpreendente biografia Rubem Braga: Um Cigano Fazendeiro do Ar (Editora Globo), de Marco Antônio de Carvalho – capixaba como o cronista –, que ficou na minha estante por inacreditáveis dez anos. Devorei a obra de 600 páginas com rapidez por conta das qualidades da obra – que o autor não pôde lançar, falecendo pouco antes de ela chegar às livrarias, em 2007 –, mas, sobretudo, pelo fascínio que o personagem em questão exerce, mesmo 35 anos depois de sua morte. A vida cheia de surpresas, perigos e amizades únicas de Rubem Braga foi bem diferente da melancolia de sua morte rápida, causada por um câncer de laringe.Nascido em Cachoeiro do Itapemirim, Rubem foi um cidadão do mundo e o mundo coube em seus textos – crônicas, reportagens, cartas, resenhas e até alguns versos –, mas um mundo muito particular, que levava em conta seus olhos de lince para observar, sua eterna curiosidade, sua rabugice conhecida e tolerada pelos outros até com certa ternura. No casarão da família que conheceu a miséria após a Revolução de 1930, nos muquifos em que precisou morar em São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Recife, nos restaurantes e bares de todos os níveis que frequentou e, principalmente, em sua célebre cobertura de Ipanema, ele viveu e contou histórias que até parecem ficção.Sem querer dar qualquer tipo de spoiler, vamos elencar, sem detalhar, algumas de suas peripécias, que incluíam nomes que ajudaram a compor a história da cultura brasileira e até mundial no século 20. Foi correspondente na 2ª Guerra Mundial, disputou uma linda mulher com Fernando Sabino, namorou Tônia Carrero. implicou com Tom Jobim; entrevistou Che Guevara, Sartre e Picasso. Além disso, foi preso em duas ditaduras diferentes, foi chamado de comunista e reacionário, trocou barrigadas numa arenga com Di Cavalcanti, passeou num velho Fiat com Rita Lee, tentou tirar João Cabral de Melo Neto da depressão, foi amigo e depois desafeto de Carlos Drummond de Andrade, trocou confidências com Clarice Lispector. Ainda deu tempo de lançar Gabriel García Márquez no Brasil, hospedar Pablo Neruda, criar duas editoras, ocupar cargos diplomáticos no Chile e em Marrocos, tentar convencer Vinicius de Moraes a abandonar a música e odiar com todas as forças Getúlio Vargas.Rubem Braga conviveu com Cecília Meireles, Mário Quintana, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Érico Verissimo, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Guimarães Rosa, José Lins do Rêgo, Jorge Amado, Ariano Suassuna. Tudo isso com doses de lirismo e alguma impiedade. Um homem cheio de contradições, como a vida. Teve muitas vitórias, como criar um pomar no 13º andar de um edifício, e derrotas, como aventuras amorosas que não conseguiu concretizar, como com Danuza Leão, que preferiu seus desafetos Samuel Wainer e Antônio Maria. Rubem podia ser solidário e vingativo, afetuoso e rancoroso. Nessas oposições intrínsecas, ele escreveu a própria vida como uma crônica do Brasil. Um texto no qual cabiam da admiração pelo programa Os Trapalhões, ao condão de identificar talentos que depois fariam história. Uma mescla que continua a hipnotizar quem o lê em suas crônicas e o conhece um pouco melhor nesta biografia. Não demorem dez anos para lê-la.

Rubem Braga, o homem-crônica

CRÔNICAS E OUTRAS HISTÓRIAS

Não foi sem incredulidade que li uma matéria sobre a nova tendência das redes sociais: postar uma foto com um livro clássico para ser mais atraente e parecer inteligente. E, saibam os desavisados, a moda até nome tem: performative reading — ou leitura performática.

Que vivemos num mundo de aparências, isso não é mais novidade. Ainda mais nesse universo paralelo das mídias sociais, onde todo mundo tem dentes brancos e alinhados, dirige Porsche, passeia de iate e não sofre de prisão de ventre ou tem mau hálito pela manhã.

Mas usar livros para impressionar não é algo tão novo assim. No fim do século passado, quando entrei na universidade e ainda não era um leitor voraz, lembro que sentia uma ponta de inveja de quem carregava pilha de livros. Via de regra, o livro do topo da pilha era algum título mais emblemático, como a biografia de um líder político, a compilação dos pensamentos de um filósofo ou um clássico da literatura. Se o pessoal de fato lia eu não sei, mas a atitude de carregá-los ao menos rendia comentários.

É curiosa a relação que algumas pessoas estabelecem com os livros. Outro dia foi uma tal que gastou não sei quanto com livros para decorar a casa. Teve também aquele caso do desembargador cujo cenário de biblioteca desabou durante uma sessão on-line e o deixou em maus lençóis. Agora, essa onda dos clássicos para performar na internet.

Se ainda estivesse entre nós, é possível que o escritor Italo Calvino sentisse profunda tristeza — ou repulsa — ao se deparar com essa tendência. Em Por que Ler os Clássicos, escreve ele que (...) os clássicos não são lidos por dever ou por respeito mas só por amor. Se ler um clássico deveria ser um ato de amor, o que dizer de quem arma uma mise en scène com um livro só para se exibir?

Engraçado é pensar que algumas dessas pessoas provavelmente não leram a obra clicada. Porque, tivessem lido, teriam percebido que ler um clássico não é privilégio de minorias intelectualmente abastadas ou de gente com QI acima da média. Um clássico é um clássico não por ser inacessível, ter sido escrito em outro século ou possuir um linguajar incompreensível. O mesmo Calvino define que um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer e que os clássicos servem para entender quem somos e aonde chegamos. Em outras palavras, trata-se de uma obra atemporal e que fala do humano. Nada além disso.

Tivessem mesmo lido os clássicos, esses leitores performáticos entenderiam que de inteligentes eles não têm nada. Não pelo menos por causa disso. Aí quem sabe trocariam o livro por algum outro objeto em busca de likes e aprovação. Porque, no fundo, é só isso o que buscam. Nem que para tanto tenham de se travestir de alguém que não necessariamente são. O que, sejamos justos, não é tão incompreensível assim.

Nancy Houston, em A Espécie Fabuladora, discorrendo sobre a relação do homem com as narrativas e as personagens de ficções, explica que um ser humano é alguém que usa uma máscara. Cada pessoa é um personagem. A especificidade da nossa espécie é que ela passa a vida toda representando a sua vida. Ora, já que é assim, então que seja com um clássico do lado. É só clicar, postar e aguardar os aplausos.

A moda da leitura performática

Esses dias percebi que a inquietação advinda da minha idade ganhou força por eu já estar há alguns anos solteiro. Sete-quase-oito anos, para ser sincero com você, meu caro leitor. É muito tempo sem se envolver romanticamente.

Claro que houve libido, encontros, envio de foguinho no Instagram. A flor da lascívia pulsa, não pense que, apesar de arromântico, esse período foi celibatário. Também não entrei para a eucaristia, né?

Só que a ânsia da minha existência, do meu imparável manancial de pensamentos negativos, é forte. Me manter vivo e funcional já é uma tarefa hercúlea comigo estando solteiro. Imagine ter de fazer mais uma pessoa feliz? Um martírio inconcebível para mim, nesse momento.

Não consigo me imaginar casado, pelo menos por agora, mesmo que a idade avance a galope. Eu já cometi o erro de morar com um boy sem muito analisar antes. Sob fortes ameaças de me tirar do armário (quando eu ainda estava nessa ingrata provação), topei deixar um infeliz se mudar para o Rio de Janeiro atrás do meu amor... Um dos meus maiores erros.

As lascas de paixão nasciam em uma convivência turbulenta. Era um episódio bom, para 20 dissabores. O acre da relação foi tomando conta, a nuvem da raiva mútua tampou os poucos raios do amor-ameaçador. Minha tática foi fazer o desalmado Romeu se cansar de mim, aos poucos.

Eu tentava terminar, mas alguma nova ameaça sempre surgia. Depois do quinquagésimo quarto chifre que botei nele, finalmente o recado foi dado. Ele entendeu que não éramos compatíveis, que se fazia necessário me deixar seguir meu caminho.

Tragédia finita, o bonde teve de andar, no auge dos meus 19 anos. O que me impressionou foi que não esmoreci, segui aberto a ser devorado pelo fogo do amor. Namorei alguns outros pretendentes depois, mas não cheguei a juntar as escovas de dentes.

O primeiro que namorei depois da tragédia grego-goiana foi um lindo, o que tinha de belo, tinha de sem sal. O seguinte, um fofo, querido, diria que o que mais admiro até hoje. Se não fossem suas crises ansiosas e as afobações, talvez teríamos algum futuro. O último com o qual me envolvi foi a gota d’água, depois de seis meses juntos, percebi que não tínhamos nada a ver. Mesmo que nossos amigos em comum tivessem jurado de pé junto que éramos almas gêmeas, não passou de especulação.

Às vezes me sinto roto, como um brinquedo quebrado que não tem conserto. Outras vezes sinto que é o mundo o culpado, como se apaixonar nesse planeta em que todo nós somos seres humanos horríveis? Como duas pessoas vão se amar eternamente entre os trancos e barrancos infinitos que são necessários atravessar caso você queira sobreviver?

Me parece necessário vestir o véu da hipocrisia, fechar os olhos para não ver aquilo que te molesta no outro, para permanecer por décadas totalmente unido a outrem. A independência e a emancipação, por ora, são minhas amigas. Mas, óbvio, se um bonitinho me olhar demais, posso apagar essa crônica e fingir que ela nunca existiu. Não falei que a hipocrisia pode ser uma boa ferramenta para os apaixonados?

Solteiro e... feliz?

Em Quem Matou Leda? (À Double Tour), de Claude Chabrol, há enquadramentos tão elaborados (Chabrol como óbvio antecessor de De Palma no escambo hitchcockiano) que perguntei: “A quem o senhor quer impressionar?”. Então, percebi que estava impressionado e disse: “Parabéns”. Nesse momento (5h41), minha esposa entrou na sala: “Por que você fica falando com a TV? Me acordou”.

Quando era moleque, os melhores filmes passavam de madrugada: Clamor do Sexo, A Noite Americana, Sindicato de Ladrões, Interlúdio, Bonnie e Clyde, Vida Cigana, 2001, Laura e Scorsese a dar com pau (Caminhos Perigosos, Alice não Mora mais Aqui, Taxi Driver, Touro Indomável e Depois de Horas foram vistos pela primeira vez no oco da madrugada com o volume criminosamente baixo, mas era isso ou ser arrastado de volta à cama por mãos paternas pouco afeitas à cinefilia).

Vi Taxi Driver no dia das eleições de 1994 e sorri com a ironia do político quase sendo assassinado em público, tradição norte-americana recentemente reavivada (aliás, um tiro no pescoço nos introduz à expiação em Caminhos Perigosos; em certas atividades profissionais, os pecados são pagos na rua). Mas nada se compara com o travelling desde o teto passeando pela matança final como o alegre olho de Deus — meu coração quase saiu pela boca ali.

Mas eu falava de Chabrol. Lembro de assuntar um documentário em que ele escrevia um roteiro à mão, orgulhoso por não rasurar nada: “O espectador vê as rasuras; melhor evitá-las”. Não por acaso, tenho enorme apreço pelos cadernos, pela manuscrita e por Chabrol.

Ele e François Truffaut, então jovens críticos dos Cahiers du Cinéma, foram entrevistar Hitchcock no set de Ladrão de Casaca. Ficaram tão mesmerizados com o inglês que, distraídos, caíram em um tanque cheio de água. “Sempre me lembro de vocês quando olho para cubos de gelo num copo de uísque”, disse Hitchcock anos depois.

Truffaut dirigiu thrillers divertidos, mas nada que se compare com o melhor de Chabrol nesse departamento. Faltavam a Truffaut o distanciamento sardônico, a abordagem “polar” e a autoironia. Truffaut tinha coração, característica que combinava melhor com materiais de outra espécie, incluindo o melodrama.

Compare os clímaces de Um Só Pecado (título bobo para La Peau Douce) e Mulheres Diabólicas (título bobo para La Cérémonie), com tiros de espingarda destroçando corpos em ambos: o primeiro (Truffaut) envolve o trágico desenlace de uma questão afetiva privada; o segundo (Chabrol) sacaneia brutalmente quaisquer marxismos e humanismos, fazendo jus ao romance de Ruth Rendell (A Judgement in Stone) no qual se baseia. A Kudgement in Stone foi lançado no Brasil com um título bobo (Um Assassino entre Nós) que encerra erros de gênero e número.

Mas gosto de Truffaut e seus thrillers, incluindo a adaptação d’A Noiva Estava de Preto, de Cornell Woolrich (que assinou as primeiras edições com o engraçado pseudônimo William Irish). La Peau Douce não é um thriller, claro. É um melodrama sobre os perigos da aviação comercial. E do meio acadêmico.

Acho que La Peau Douce resultaria melhor se filmado em cores carregadas. E A Noiva Estava de Preto resultaria melhor se filmado em preto e branco (como De Repente, num Domingo). Claro, achar o que quer que seja é fácil e gratuito.