Tenho passado muito tempo na cozinha. Acho que é uma forma de matar a saudade que sinto de você. Semana passada foi seu aniversário, então é impossível não me lembrar de tudo. Botei uma música de fundo, preparei os ingredientes e fui mexer as panelas, como a gente fazia quando você ainda estava por aqui.Fiquei rindo sozinha ao pensar no que você me diria na hora de selar o filé para o estrogonofe: “Coloque a carne aos poucos para dourar, senão ela junta água e perde o suco! Não adianta ter pressa, é devagar e sempre, minha filha!”. Engraçado como a cozinha meio que imita a vida. É preciso ter paciência para que tudo dê certo.Esses dias me deu uma vontade de comer aquilo que hoje eles gourmetizaram e acham bonito chamar de comfort food. É só um jeito afetado de se referir à nossa comidinha caseira e cotidiana. O cardápio era exatamente igual ao seu: carne moída, arroz, feijão, chuchu e salada.Enquanto refogava a carne, de novo recordei dos seus conselhos: “Passe o garfo e vá soltando os pedaços, porque não tem nada pior que carne empelotada! E pique esse chuchu em cubos do mesmo tamanho, para não ficar aquele troço desajeitado!” Pois é, assim como na vida, até as coisas mais banais devem ser feitas com capricho.Preparei um brigadeiro para o vizinho, que fez aniversário no mês passado, e outra vez segui seus passos: “Coloque um pouco de mel e de licor de cacau nesse doce! Não deixe ficar aquele negócio sem graça, igual ao de todo mundo”. Criatividade é sempre bem-vinda. Não é porque todos fazem de um jeito, que não podemos inovar.Ao ensinar uma amiga a fazer seu lagarto desfiado com vinagrete, ela achou interessante a mistura, pois só conhecia a receita com passas e pimentão. Mal sabe ela que você “inventou” essa combinação porque era mais barato. É isso: nas adversidades, é preciso saber improvisar. Quem não tem cão, caça com gato.Há uns dois meses, fez uma onda de frio por aqui – bem rápida, diga-se de passagem – e aproveitei para preparar seu famoso chocolate quente. Queimei o açúcar, deixei derreter antes de virar caramelo e misturei com leite, cacau e um pouco de conhaque. Quem provou, pediu mais. O segredo? Um simples toque pode mudar tudo.Daqui quatro meses é Natal, sua época predileta do ano. Fico imaginando a sua empolgação, pois em outubro você já começava a se preocupar com o que faria na ceia do dia 24 de dezembro, que era sempre impecável. Celebrar as tradições com alegria e entusiasmo faz com que elas se tornem mais especiais.Aquela salada de frango defumado com uva rubi e molho rosé se tornou um clássico, não apenas nos nossos natais, mas também no de amigas que passaram a data conosco. Um dia, você ousou e decidiu incluir nozes no prato. A ousadia mostrou que mesmo o que é certo e garantido pode mudar e ficar ainda melhor.Uma grande amiga conta que adorava ir almoçar lá em casa, na época da faculdade, porque “em plena terça-feira, a Jane fazia salada com morangos e lombo recheado”. De fato, você não se privava do prazer, esperando a hora certa. Todo dia era dia de comer bem e ser feliz. A vida tem de ser vivida no agora.Nunca mais provei uma bala de abacaxi como aquelas que você fazia nos meus aniversários. Certa vez, te perguntei se valia a pena tanto esforço – ralar o abacaxi, misturar com o açúcar no tacho, mexer até dar o ponto, lavar o tacho enorme... Você respondeu que a preguiça era um veneno, porque tudo o que vale a pena dá trabalho.Cozinhar é aprender mais sobre a vida e reavivar as memórias afetivas. É também um jeito de manter você comigo, mãe: em cada receita, em cada gesto repetido, em cada tempero que carrego no coração. A saudade se transforma em sabor, e o amor, em herança que nunca se perde.