O recorte em uma vida não é por se tratar de alguém excepcional cuja trajetória será narrada nessas breves linhas. É para evidenciar que cada existência é única, o que vale para todo e qualquer vivente e também para uma obra de arte, insubstituível sempre.Dito isso, reforço para quem ainda tem a pretensão de definições exatas para ter maior controle: Mulher, essa criatura cujo perfil de gênero abrange quase metade da população mundial, é uma ilusão tramada para exercer domínio. Não custa citar Simone de Beauvoir: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”.Existem pessoas, entre elas, mulheres, cada qual indefinível até para si próprias. E se essa incerteza sobre o ser apavora, porque não é nada fácil mesmo lidar com vazio e movimento, que exigem inventar e reinventar a cada instante, vamos recobrir com discurso genérico e, por isso mesmo, marcado por preconceitos. Exaustivo vestir o uniforme imposto pela cultura e corresponder a um semblante, dá até vontade de retomar o punk e seu gestual nada cortês.Poderiam nos poupar de hipocrisia na necessária data para lembrar o quanto somos exploradas, espoliadas, vilipendiadas, massacradas e exterminadas, porque se convencionou que mulher é menos e, ainda assim, ameaçadora, perigosa, víbora – lembram da associação da venenosa com Eva? –, louca, bruxa. Para a fogueira essa tentação irreprimível, inquebrantável, resistente, sedutora e misteriosa. Sexualidade da mulher ainda causa espanto se o prazer é experimentado por ela, mesmo após décadas de movimento feminista. Lá vem mais tentativa de enquadramento, porque não tem como negar que mãe só existe porque houve fecundação e até criancinhas em pré-alfabetização já sabem como esta ocorre. Então, criam-se juras de amor eterno para permitir desejo, forjam-se laços “indestrutíveis” e reveste-se de santidade maternal o que é, na essência, humano. Ai daquela que não se submeta e as estatísticas apavorantes de agressões, violência doméstica e feminicídio são forte argumento para mostrar que não se trata de tese panfletária. Antes fosse, mas é a vida como ela é, hoje, século 21. Um vídeo que circula em redes sociais enaltece mulheres geniais cujas descobertas revolucionaram a ciência. Um desfile de nomes e feitos, a exemplo de Marie Curie e suas pesquisas pioneiras sobre radioatividade. Gostei, compartilhei e me deparei com o seguinte comentário: “Eles esqueceram de Maria, que é mãe do Cristo Jesus”. Com todo respeito à fé, expliquei que não foi esquecimento, eram citadas cientistas e não dogmas divinos.Mas não pude deixar de notar que a rapidez em retomar o simbólico feminino na religião era um sintoma de referencial fálico, patriarcal. Santa sim, pura, virgem, imaculada, mas transformando o mundo com ideias, política e arte, aí ainda incomoda, apesar de cada vez mais dependermos desses talentos femininos que rompem paradigmas. “Não estava falando de Eva”, foi o contraponto bem-humorado à minha observação. Voltamos a ela, a curiosa Eva que mesmo brotando da costela de Adão o induziu à desobediência e pecado, o que levou à perda do paraíso. Também em rede social, outro vídeo propaga a fala indignada de uma moça que mandava enfiar a flor em lugar impronunciável neste espaço. Dá vontade de falar, mas tenho compostura. Só que recuei, assustada. Não, a flor não merece maus tratos, e quero a flor, não importa como nem por quê. Que prevaleça a delicada flor, seja como for.