Vou largar de mão de muita coisa neste próximo ano. Largar de ser besta e parar de dar atenção com o que dizem, debatem, polemizam nas redes sociais, esse esgoto povoado por tanta podridão e hipocrisia. Vou largar de ficar com raiva de políticos populistas que disseminam a desinformação e o ódio como estratégia de engajamento. Vou largar de passar pano para quem apoia projetos que destroem o meio ambiente, que pioram a vida dos trabalhadores e que pregam a violência como antídoto para a própria violência só porque tais apoiadores são idosos, parentes, amigos de outros tempos. Não, temos que largar mão da covardia em não confrontar racistas, homofóbicos, saudosos de ditaduras e seus torturadores só porque são nossos vizinhos ou conhecidos.Vou largar mão também de me preocupar com o que eu não posso controlar. Adianta alguma coisa, afinal? Largar mão de buscar de me inteirar sobre cada previsão catastrófica quanto à eliminação de empregos – incluindo o meu – pela Inteligência Artificial, como se minhas noites mal dormidas pudessem influir infinitesimalmente na marcha dos processos tecnológicos, por mais desumanos que sejam. Larguei mão de pensar se daqui a cinco anos uma IA não estará escrevendo esta crônica em meu lugar. Se for assim, desejo uma boa leitura do que os algoritmos produzem e não das subjetividades de um pobre jornalista. Vou largar mão de me afligir se o humano será supérfluo no futuro. Possivelmente nesse futuro eu nem estarei mais aqui. E se eu estiver, como saber quem serei, o que farei, o que pensarei?Vou largar mão de me estressar no trânsito, com esse bando de barbeiros e rodas-presas que atulham nossas ruas, virando abruptamente sem dar seta, parando o carro em fila dupla, falando ao celular enquanto dirigem, buzinando por qualquer bobagem. Não quero mais entrar na mesma vibe dessa gente insana, que acredita piamente que o mundo é só delas e podem fazer o que lhe dão na telha, a bordo de suas caminhonetes gigantescas, de suas motos de entrega, de seus carros já todo esfolados pela imprudência diária.Vou largar mão ainda de ouvir palpites que não pedi, de escutar opiniões aleatórias e sem contexto, de estar exposto a mensagens de coaches malandros e seus discursos enlatados sobre empreendedorismo, repetindo o tempo todo que “querer é poder”. Vão plantar batatas! Vão catar coquinho na ladeira! Gente chata pra diabo! Estou largando de mão dessa positividade tóxica e oportunista, dessa fé excludente e preconceituosa, desse manual de bem viver propagandeado por quem não vale um tostão furado. Saiam pra lá, infelizes! Estou largando mão de vocês todos.Essa lista imensa, para a qual eu vou passar a apertar, com força, aquele botão mágico cujo nome começa com a letra F e termina numa ênclise, soma-se a uma outra de dissabores já bastante considerável, aos quais a idade me ensinou a não me agarrar. Eu já larguei mão de reunião de condomínio, com aquela gente invariavelmente chata e intrometida; já larguei mão de negacionistas da ciência e antivacinas, que passei a considerar seres exóticos de um mundo imaginário; já larguei mão de grupos de WhatsApp da família, requerendo o posto do primo metido a besta, sem qualquer tipo de remorso por isso; já larguei mão de ritos religiosos com celebrantes reacionários, para os quais simplesmente dou as costas e vou embora sem o menor constrangimento; já larguei mão de quem faz caridade perto do Natal para afagar o próprio ego, mas é contra distribuição de comida a moradores de rua ou ataca programas assistenciais que ajudam os mais pobres no restante do ano. Com essas pessoas eu nem falo mais, já que o hálito de falso cristão que exalam me deixa nauseado.Largue mão de muita coisa também. Só não largue mão de ler este texto, mesmo porque ele já acabou. Desculpe, é tarde. E se tiver alguma queixa quanto a isso, eu não posso fazer nada. Também já larguei mão de tentar agradar todo mundo.