Os passos históricos dados por d. Pedro I não se extinguiram há 200 anos quando, nas margens do Ipiranga, em São Paulo, proclamou a Independência do Brasil. Eles também vão além dos quase dez anos que o filho de d. João VI e de Carlota Joaquina passou como imperador do Brasil. Eles só terminam em Portugal, onde, 190 anos atrás, já como d. Pedro IV, ele iniciou sua derradeira batalha para depor o irmão, d. Miguel, de poderes absolutistas que exercia e reentronizar, como rainha de Portugal, sua filha, d. Maria II. Esses passos precisam ser seguidos com calma, desde o instante em que ele voltou a sua terra natal.Para isso, é preciso estar na cidade do Porto, a segunda maior de Portugal e chamada de “capital do Norte”. Foi aqui que os principais acontecimentos da última parte da vida do imperador d. Pedro I (para os brasileiros) e do rei d. Pedro IV (para os portugueses) ocorrem. Mas o começo não está exatamente nos limites centrais desse pujante centro urbano. É preciso pegar um ônibus (linha 508, saindo de um terminal próximo à icônica Casa da Música, um dos monumentos mais conhecidos da cidade), viajar por pouco mais de uma hora e desembarcar no litoral, em um local tranquilo e belo chamado Cabo do Mundo.Lá está um obelisco que celebra a chegada de d. Pedro I à Praia da Memória, em 8 de julho de 1832, com uma tropa de 7.500 homens, o chamado Exército Liberal. Esses combatentes, reunidos nos Açores, primeira parada do imperador em sua volta a Portugal, lutaram por mais de um ano contra os soldados de d. Miguel, o Exército Absolutista. E foi no Porto que houve um cerco no qual o primeiro imperador brasileiro resistiu por todo esse tempo, o que lhe valeu para a posteridade a imagem de herói. Sua estátua equestre está na principal praça do Porto, a da Liberdade, e também no Terreiro do Paço, em Lisboa.Da praia da Memória, as tropas de d. Pedro seguiram para o Porto, onde se encastelaram e fizeram o Exército de d. Miguel negligenciar a parte sul do país, possibilitando que soldados apoiados pela Inglaterra tomassem Lisboa e derrotassem o homem que depusera a própria sobrinha. A importância da cidade em sua trajetória fez o imperador decidir que seu coração deveria permanecer na Igreja da Lapa, uma das mais belas do Porto, de onde agora saiu para o 7 de Setembro no Brasil. Seus restos mortais foram para o Brasil em 1972, nos 150 anos da Independência, e estão no mausoléu construído no local do Grito do Ipiranga.Porto guarda vários vestígios da presença de d. Pedro I e de seus feitos como comandante. Apesar da fama de inconsequente, impulsivo e mulherengo, a imagem de impetuoso defensor da liberdade contra o arbítrio do irmão é a que permanece. Nem a tentativa de acordo com d. Miguel para evitar a disputa na sucessão após a morte de d. João VI – ele propôs que o inimigo se casasse com d. Maria II, sua filha, em nome de quem abdicou da Coroa Portuguesa e que chegou a reinar entre 1826 e 1828 – macula seu legado. No Porto, há passeios por pontos que lembram quando d. Pedro fez da cidade a sua fortaleza.Alguns desses locais hoje são museus. É o caso do Museu Militar do Porto, que guarda uma coleção de armamentos e fardamentos e cujo edifício foi abrigo para d. Pedro I em várias ocasiões. Cinco anos depois de sua morte, ocorrida em 1834 (ele tinha apenas 36 anos de idade), no Palácio de Queluz, em Lisboa, exatamente no mesmo quarto onde nascera em 1898, um cemitério, a cargo da Santa Casa de Misericórdia, foi fundado ao lado desse prédio onde é o Museu Militar. Ali encontram-se sepulturas de pessoas que viveram o cerco do Porto entre julho de 1832 e agosto de 1833, como políticos e comerciantes.Aliás, a antiga sede da Santa Casa de Misericórdia, na Rua das Flores, uma das mais antigas do Porto e que atravessa o coração da cidade, é outro imóvel histórico. Ali, d. Pedro, que foi provedor da instituição e seu presidente, chegou a despachar e sua mesa de trabalho, compartilhada com as outras pessoas que exerceram o mesmo cargo, está em exposição. Outro prédio relevante é onde hoje está o Museu Nacional Soares dos Reis, um imponente edifício no qual d. Pedro se abrigou várias vezes e chegou a ter, até o ano passado, uma exposição em cartaz recordando esse papel fundamental do prédio.Histórias pitorescas não faltam daquele ano de cerco, cuja resistência foi liderada por d. Pedro I. Porto é uma cidade de relevo íngreme nas margens do Rio D’Ouro. Nas barrancas que serviam de postos de observação e trincheiras, vários combates foram travados. Em um desses pontos, hoje o Mirante da Vitória (tem esse nome não é à toa e dá aos turistas uma das vistas mais espetaculares das lindas pontes sobre o rio), um soldado teria salvado a vida do imperador se colocando a sua frente e recebendo a bala que lhe era destinada. O Mosteiro da Serra do Pilar, do outro lado do rio, também foi uma fortificação dos liberais.Com a vitória de d. Pedro, seu irmão, d. Miguel, foi exilado na Alemanha. O vitorioso tomou, de fato, as rédeas da regência que já havia instaurado ainda nos Açores, antes de chegar ao Porto. Uma carta constitucional, aprovada pelas Cortes, entregou a d. Maria II o poder monárquico em Portugal. Ela foi entronizada em 1834 e seu pai morreu quatro dias depois, de tuberculose. Seu coração foi retirado para preservação por seu médico particular, João Fernandes Tavares, um brasileiro negro que se formou na Europa (caso quase único no século 19) e que acompanhou o famoso paciente até o fim.Hoje, o local do desembarque é uma das regiões mais tranquilas do litoral próximo ao Porto. O trecho de praia onde os soldados liberais desceram dos navios tem suas dunas protegidas por um projeto de preservação ambiental. Restaurantes foram abertos e pistas de caminhada e ciclismo construídas para a população. Quase em linha reta, cerca de 600 metros avançando pelo continente, há um promontório de rochas que guarda um sítio arqueológico, onde foram encontradas sepulturas medievais esculpidas em pedras. É a necrópole medieval mais próxima do mar já descoberta por arqueólogos portugueses.Não muito longe dali, está o Porto de Leixões, um dos mais importantes da parte norte de Portugal. Ele também é o maior porto artificial do país, uma vez que foi erguido usando a foz de um pequeno rio, tendo seus limites aterrados para que pudesse servir como ponto de ancoragem de navios de grande calado, de carga e de cruzeiros. Ele separa a região de Facho (onde fica a Praia da Memória), Pedra de Novais e Leça da de Matosinhos, certamente o balneário mais badalado do Porto, já ao lado da foz do D’Ouro. Quando d. Pedro I chegou à região, não havia nada disso. Só havia a História a ser feita.Uma cidade de batalhasPorto estava cercada desde julho de 1832, mas boa parte da população ainda hesitava em tomar parte efetiva do conflito. Todos temiam que ao apoiar um dos lados da guerra civil entre os irmãos, poderiam estar optando pelo lado que sairia derrotado e as represálias seriam duras. Isso mudou no Dia de São Miguel Arcanjo, 29 de setembro, de 1832. Naquela data, uma ofensiva das tropas absolutistas foi lançada contra a cidade para celebrar exatamente o santo que havia inspirado o nome de D. Miguel. E havia uma ordem que apavorou os habitantes: os soldados poderiam saquear a cidade.Isso motivou que muita gente se postasse nas trincheiras das tropas de D. Pedro I, não por convicção política liberal, mas para salvar a própria pele e seus bens. Foi um ponto de virada para a moral dos que resistiam ao cerco e tornou a tarefa de invadir seu perímetro, que já era difícil, em algo impossível. Porto já possuía histórico de cercos e lutas. Uma de suas principais praças tem o nome de Batalha em razão de confrontos que datam ainda da Idade Média, entre cristãos e os chamados mouros, durante a ocupação muçulmana da Península Ibérica. Nas imediações, também houve outros confrontos em diferentes épocas.Os primeiros sinais de ocupação humana na região são de 2.700 anos atrás. Depois vieram os visigodos e os romanos, que construíram uma muralha primitiva entre os séculos 1 e 3, da qual hoje sobram poucos vestígios. Na Idade Média, a cidade foi amuralhada, mas também há pouco de original daquelas construções. O que os turistas veem hoje são reconstruções bem posteriores. Mas foi do Porto que o rei guerreiro Afonso Henriques partiu, no século 12, para retomar Lisboa aos muçulmanos. A escolha da cidade por D. Pedro I (ou D. Pedro IV, em Portugal) para iniciar a resistência a D. Miguel não foi gratuita.O cerco dos anos de 1832 e 1833, porém, foram particularmente difíceis para quem vivia no Porto. A falta de mantimentos, a insuficiência de lenha para acender lareiras e fogueiras durante o inverno rigoroso da região e uma epidemia de cólera que matou milhares de pessoas foram algumas das provações que civis e militares tiveram que enfrentar. As escaramuças eram constantes e boa parte de ruas e parques foram destruídos para que barricadas pudessem ser erguidas. Quando a derrota já era inevitável, as tropas que sitiavam a cidade fugiram, mas antes incendiaram os depósitos de vinho do porto.As preciosas cargas dessa bebida tão identificada com o vale do Rio D´Ouro fizeram a fama da região e alavancaram boa parte do comércio que passava pelas duas cidades vizinhas, Porto e Vila Nova de Gaia. Sua posição geográfica estratégica fez do local uma rota preferencial de navios mercantes, que vinham buscar o “vinho do Porto” para levar para várias partes do mundo. D. Pedro I chegou ao litoral da cidade comandando uma esquadra com 60 navios e parte desta história é contada no filme A Viagem de Pedro, de Laís Bodanzky, que acaba de ser lançado tendo Cauã Reymond no papel do imperador.-Imagem (Image_1.2524220)-Imagem (Image_1.2524221)