A história da arte em Goiás tem um capítulo muito especial marcado pelas cores de Antonio Poteiro (1925-2010). Em telas, potes e esculturas, o artista plástico narrou a saga cultural dos goianos e evidenciou as riquezas do folclore do povo, como as Cavalhadas, as festas juninas, as histórias bíblicas e as belezas do Cerrado. Retratou também os conflitos sociais, as injustiças e o racismo. Com formas simples e discurso afiado, ele tornou-se um dos maiores cronistas do Estado. Na segunda-feira, completam-se dez anos sem novas interpretações desse protagonista do tempo em que vivia.“O Poteiro deixou uma obra consistente e absolutamente significativa e por esse motivo atravessou as fronteiras com exposições no Brasil e no mundo. Ele abriu vários caminhos e influenciou o circuito atual do Estado. É um artista que contou a nossa história e Goiás sem ele jamais teria a mesma potência artística que tem”, ressalta o curador e diretor da Vila Cultural Cora Coralina, Gilmar Camilo. Ao lado de frei Confaloni, Siron Franco, Ana Maria Pacheco e Gustav Ritter, Poteiro participou do movimento que colocou a produção goiana em evidência.Ao longo da carreira, Poteiro produziu cerca de 3 mil obras, entre pinturas, potes e esculturas. Ele fez exposições em 40 países, como Itália, México, Alemanha, França e Japão, participou das edições de 1981 e 1991 da Bienal de São Paulo e da Bienal de Havana em 1989, e faz parte do acervo de grandes museus e importantes coleções. O artista, nascido na pequena Santa Cristina de Pousa, Portugal, mas goiano de coração, curtiu em vida a fama que conquistou com o trabalho. Morreu aos 84 anos no dia 8 de junho de 2010, de parada cardíaca por complicações de câncer.A obra de Poteiro tornou-se objeto de desejo entre colecionadores, é procurada por grandes curadores e parte desse prestígio se deu graças ao trabalho que o Instituto Antonio Poteiro, criado um ano após sua morte, vem fazendo em prol do legado do artista. “Criamos movimentos culturais em vários espaços pelo Brasil e promovemos frequentemente visitas guiadas pelo acervo com crianças”, ressalta o filho e artista plástico Américo Poteiro. A última exposição, uma das maiores pós-morte, foi realizada em janeiro em Belo Horizonte (MG) e encerrada em março, recebendo mais de 20 mil visitantes. Não estão previstas novas exposições para 2020.“Esse cuidado que a família tem com o artista é fundamental para preservar sua memória. É muito triste ver artistas excelentes cujos filhos não dão valor a essa arte, talvez por desconhecimento, às vezes por não acreditarem no próprio valor do trabalho do pai ou da mãe, ou por divergências familiares e tudo isso acaba atrapalhando a perenidade de um pintor, ainda mais numa sociedade competitiva”, ressalta o crítico e curador Oscar D’Ambrosio, autor de livros aobre arte naïf e contemporânea.Américo Poteiro tem papel fundamental na formação do acervo do instituto. Na época em que acompanhava o pai em exposições, sempre guardava duas ou três obras para formar uma coleção que contemplasse várias fases criativas do artista. Além disso, ele juntou telas de outros artistas que foram adquiridas ou trocadas por Poteiro. “Sempre tive essa preocupação porque, quando viajava com ele e passava na casa de outros artistas, nunca vi deles essa preocupação em preservar o próprio trabalho. O pessoal fala que fui durão, mas foi o jeito que encontrei para manter o nome do Poteiro .”SimplicidadeQuando se olha uma pintura de Poteiro, duas características saltam aos olhos: a simplicidade dos traços e a riqueza de cores, como o amarelo vibrante dos girassóis e os pássaros multicoloridos. “De primeira, não se percebe a complexidade que existe na obra do Poteiro, especialmente no conteúdo. É de extrema elaboração, de uma síntese, que ele se torna uma espécie de cronista do País. Na sua tela, a gente vê os conflitos sociais, situações de racismo, por exemplo, tratados numa pincelada de criança”, analisa o galerista e crítico PX Silveira, autor do livro Poteiro na Primeira Pessoa (2013).Poteiro tinha uma imaginação clínica. Sem nunca ter ido assistir às Cavalhadas de Pirenópolis, retratou a encenação do confronto entre mouros e cristãos, assim como a Procissão do Fogaréu na cidade de Goiás e as festas juninas. Quando opõe o sagrado ao profano, parece que buscou na Bíblia. “O que mais me impressiona é a questão das suas interpretações bíblicas que são surrealistas com uma liberdade de expressão muito grande. O modo como construiu suas imagens parece que todos são profetas que têm algo a dizer sobre o mundo novo que está por vir”, completa Oscar D’Ambrosio.A sua obra era um retrato da sua personalidade. Poteiro nunca teve o perfil de um pintor badalado e a sua vida explica isso. Ele foi guarda-noturno, cisterneiro, trabalhou no garimpo em Mato Grosso, passou dois anos e meio em uma aldeia indígena perto da Ilha do Bananal e vendeu potes na Feira Hippie, nos anos 1970. Mesmo depois de consagrado, não deixava de fazer feiras aos domingos no Jardim América, de chinelo, camiseta desabotoada e a longa barba branca. “Na vida, ele foi um pouco de tudo, um aventureiro, e por isso tem esse universo artístico”, diz Américo.