Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com a realidade ‘não’ é mera coincidência. A advertência usual para evitar dissabores com a lei é desprovida do não acima destacado, o que carece de sentido. Obra alguma, de qualquer gênero ou estilo, prescinde de ter com a realidade conexão. De forma óbvia ou por intrincado viés, a criação artística espelha elementos do tempo em que brotou e muitas vezes antecipa o que não se alcança na travessia imediata das experiências. Zeitgeist, l'esprit du temps, o espírito do tempo.No caso do livro ‘Por Incrível que Pareça!’, a identificação entre os textos reunidos com personagens e episódios no Brasil a partir de 2019 – portanto, desde o início da gestão de Jair Bolsonaro – se dá por maneiras distintas de elaboração, já que se trata de vários autores. Mas as variações sobre o mesmo tema têm o mesmo potencial de provocar espanto, inquietação, um riso meio nervoso em quem é remetido a fatos recentes e preferia que tudo não passasse de delírio, alucinação, provocação de escritores alheios ao mundo. Infelizmente, muito pelo contrário, pode-se afirmar que a coletânea explicita a vida como ela é num mundo, esse sim, ensandecido.‘Por Incrível que Pareça!’tem como organizadores Pedro Célio Alves Borges e Nilton Rodrigues, que comparecem cada qual com um conto. Cientista político, Pedro Célio é professor aposentado da Faculdade de Ciências Sociais da UFG. Nilton Rodrigues, graduado em Letras, é escritor, roteirista, especializado em cinema , ator e diretor teatral.Na apresentação que assinam juntos, os organizadores chamam atenção para a “era Bolsonaro”, que definem como “conjunturas de tal modo excepcionais, sustentadas em bases morais altamente reprováveis e fartas de elementos bizarros, que têm constituído cenários cujo potencial para surpreender e causar perplexidade desafia a mais fértil das imaginações criadoras”. Desafio aceito pelos escritores que compõem a coletânea.“O livro acabou por reunir talentos consagrados, laureados pela crítica, jovens autores da Internet, do palco, e até engavetadores”, informa o texto de apresentação. Os textos são apresentados em duas partes, ‘Narrativa Curta’, que reúne contos e crônicas, e ‘Outros Escritos”, em que constam poemas, cordel, peça teatral e crônica-artigo.O “bestiário de uma época negacionista”, subtítulo do livro, traz ainda ilustrações do artista plástico ZèCésar, selecionadas de uma série de gravuras produzida “sob inspiração destes tenebrosos tempos”. Na capa, uma colagem do artista de fotografias das paredes do Câmpus 2 da UFG cheias de grafites, em que se destaca a expressão “Aveis Nenhé” , de autoria do ator Jhony Robson, o Palhaço Bulacha. Basta buscar na fonética o que em claro português significa essa contração goiana ao falar: “Às vezes nem é”.O livro faz transitar pela dúvida sobre as dimensões reais e imaginárias percorridas nas narrativas curtas. Realismo fantástico, teatro do absurdo, farsa, tragicomédia, tem de tudo nesse flerte com o noticiário de escândalos e decisões eivadas de desvario. Mas, como bem observam os organizadores, a questão não é só de exercício de poder, da “política” como atividade profissional, não por acaso tão depreciada, sinônimo mesmo de corrupção.“O governo de momento traduz e unifica a variedade de sentimentos, tendências e vocações que desde antes fermentam no tecido social.” Ainda: “É a nação prenhe de excentricidades políticas, cujas crias vêm à luz em forma de deboche das instituições políticas e se deixam conduzir a níveis ora de comédia, ora de tragédia”.Não bastasse tanto descalabro, as cenas de horror se sucedem em plena pandemia com centenas de milhares de mortos, doentes, desempregados, gente faminta e sem perspectiva. “Difícil gracejar acerca dessa realidade!” Sim, é uma graça sinistra, um humor corrosivo.Breve síntese do que o leitor terá nesse “bestiário” de uma terrível era. “O Implante”, de Edson Coelho de Oliveira, sobre um jovem negro que não se reconhece na própria pele, propaga o racismo e é nomeado para dirigir o órgão responsável pela políticas públicas relacionadas a afro-brasilidade; “O Descobridor de Sapos”, de Rebeca Tipple, sobre um menino cuja vocação científica é sufocada; “Sobre Respeito e Delírio”, de Mariano Caldas, que reproduz um instigante diálogo no WhatsApp; “O Rei do Bagaço”, de Eguimar Felício Chaveiro, sobre poder passado de avô ao neto como legado coronelista; “Um Homem de Bens”, de Nilton Rodrigues, sobre um advogado sem brilho que vê chance de ascensão ao se tornar defensor da família presidencial; “O Reverendo e o Cabo da PM”, sobre um pastor que, ao morrer, deixa carta na qual afirma que seu corpo ressuscitará.Na segunda parte do livro, estão “Cara Dum, Focoinho do Outro”, de Luiz Ruffato, que reproduz fragmentos de escrito datado do Império Romano; “Doentia mente”, poema de Sebastião Rios inspirado em pronunciamento de Bolsonaro, em 2020, na Assembleia da ONU; “Funeral de um Vazador”, de Tião Parahyba, cordel sobre os dilemas de Sergio Moro quando ministro da Justiça; “A Histérica”, de Léo Pereira, peça teatral resultante de exercício de escrita automática em que Pasárgada vira Balbúrdia.Um mosaico de uma época que reconhecemos, semelhanças não são mesmo meras coincidências. Mas se doer além do suportável, até porque a carapuça pode vestir muito bem, que prevaleça a tão ostentada bandeira da liberdade de expressão. E, se resposta houver, que não seja truculenta, com disseminação de fake news e muito menos tiroteio, mas no mesmo nível de erudição, inteligência e criatividade. Livro: Por Incrível que Pareça! -Coletânea de contos, crônicas, poemas, peça teatral e outros escritos (145 páginas, Editora Kelps, 2022)Organizadores: Pedro Célio Alves Borges e Nilton RodriguesLançamento: 8 de agosto (segunda-feira)Horário: das 18 às 20 horasLocal: Câmara Municipal de GoiâniaPreço: R$ 25