Em 2004, a Rede Globo levou ao ar, com ares de superprodução, a minissérie Um Só Coração, que trazia entre seus personagens os principais nomes da Semana de Arte Moderna, de 1922. A autora Maria Adelaide Amaral, na época, deu várias entrevistas a respeito do trabalho e não tinha dúvidas em alçar aquele evento de 100 anos atrás como um marco basilar da cultura brasileira, mas ela afirmou que “os ventos modernistas já tinham invadido o País” antes. Mas como um acontecimento histórico, a Semana serviu de emblema. Algo que não se resumiu àquele momento e que continua a ecoar ainda hoje.Em um artigo na última semana no jornal Folha de S. Paulo e em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, o jornalista Ruy Castro reacendeu uma antiga polêmica, defendendo que o ambiente cultural paulista de um século atrás era tacanho e que, na verdade, a Semana de Arte Moderna refletiu essa timidez. Em sua avaliação, ela só foi redescoberta durante a ditadura militar, no governo Médici, em 1972, quando completou 50 anos e foi usada, por seu viés nacionalista, para celebrar os 150 anos da Independência do Brasil. Só aí ela passou a ser estudada nas escolas e incensada em sua relevância.É uma opinião controversa, mas que ajuda a animar os debates sobre o que significou a Semana de 22 para a cultura brasileira. Os argumentos de Castro são bons quando se pensa que parcela significativa daqueles modernistas tinha relações incomodamente próximas com gente poderosa e polêmica. Os integralistas, que defendiam abertamente o fascismo, estavam lá não só com o poeta simpatizante Menotti Del Picchia, mas com o próprio líder do movimento, Plínio Salgado. Washington Luis, último presidente da República Velha, foi padrinho do casamento de Tarsila do Amaral com Oswald de Andrade.É inegável, porém, que as sementes ali plantadas floresceram, mesmo depois que o movimento modernista de 22 já havia se despedaçado. Pessoas envolvidas naquele momento inspiraram outras. Apenas para citar um exemplo, a socialite Yolanda Penteado – sobrinha de Olívia Guedes Penteado, mecenas da Semana de 22 – deu continuidade a esse trabalho, ao lado do marido, o industrial Ciccillo Matarazzo. Eles criaram a Bienal de Arte de São Paulo, em 1951, trazendo a tela Guernica, de Pablo Picasso, para a primeira edição. Na mesma esteira, o Museu de Arte de São Paulo, o Masp, foi inaugurado.Desbravar os planaltos paulistas para a arte e fazer da Pauliceia Desvairada um polo central de irradiação cultural para o Brasil não foi mérito exclusivo dos modernistas de 22, mas retirar o papel que tiveram nessa transformação seria injusto. Décadas depois da realização daquele evento no Theatro Municipal de São Paulo, outros movimentos tiveram nos muitos manifestos lançados naquela ocasião. As muitas formas de redescobrir referências nacionais incentivaram da tropicália ao cinema novo, inspiraram gênios nas artes e na literatura, motivaram ensaios e teses sobre nossa identidade.Se a atmosfera daquela semana de um século atrás pode ter sido idealizada em larga medida para finalidades políticas de ocasião – na época e posteriormente –, não se pode dizer o mesmo das consequências genuínas que os modernistas suscitaram nos mais diferentes setores, firmando diálogos até então inéditos com outras culturas, mergulhando em nossa história de formas mais criativas e críticas, revitalizando as bases de uma cultura herdada de meros transplantes feitos no século 19. Os modernistas desafiaram modelos, soterrando parnasianismos, regionalismos e romantismos anacrônicos. Tudo era complexo.Nomes mais famosos, como Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e Villa-Lobos, ao lado de figuras menos conhecidas, como o pintor suíço John Graz, o historiador Rubens Borba de Moraes e o poeta Agenor Fernandes Barbosa, estiveram presentes em outros momentos, em dimensões diferentes. Vieram novas gerações de modernistas na poesia, na escultura, na pintura, na arquitetura. Se, como disse Ruy Castro de forma provocativa, “São Paulo era uma Cataguazes” naquela época, nunca uma cidadezinha do interior causou um terremoto tão grande na cultura nacional.