Quando você foi embora, fez-se noite em meu viver, Milton. Forte eu sou, mas não tem jeito: hoje eu tenho de chorar. A vida é feita de encontros e despedidas, você nos ensinou. Tem gente que veio e quer voltar, tem gente que vai e quer ficar, mas não é fácil saber que nos bailes da vida, num bar em troca de pão, nós não o veremos mais cantando que toda forma de amor vale a pena, que há esperança nos corações de estudantes, que é preciso ter força, que é preciso ter raça, que é preciso ter gana sempre. Sim, Milton, amigo é coisa pra se guardar do lado esquerdo do peito, mesmo que o tempo e a distância digam não.E não há tempo ou distância capazes de romper os laços que esse “carioca mais mineiro que existe”, como ele mesmo se define, estabeleceu com gerações de fãs apaixonados por certas canções que trazem contos da água e do fogo, cacos de vida no chão, cartas do sonho do povo e o coração do cantor. Neste 11 de junho, começa a turnê derradeira desse ícone, figura central de nossa cultura no último meio século, homem que bebeu na ancestralidade negra, na força da oralidade popular, no olhar genial sobre o interior e a cidade, que uniu Beatles e folia de reis, terra e asfalto, mergulhos íntimos e luta política.A Última Sessão de MúsicaBatizada de A Última Sessão de Música, a turnê vai percorrer algumas das principais capitais brasileiras, começando pelo Rio de Janeiro e terminando em novembro, em um apoteótico show no Mineirão, em Belo Horizonte (MG). Mas essa ponte aérea Rio-Belo Horizonte terá muitas outras escalas, como São Paulo e cidades de Portugal, Estados Unidos, Inglaterra e Itália. Uma despedida que muita gente não está disposta a perder. Em apenas poucas horas de vendas pela internet, mais de 60 mil ingressos foram adquiridos, forçando a abertura de novas datas. Todo mundo quer ver Milton Nascimento, o Bituca, ainda uma vez nos palcos.Uma dessas pessoas é a empresária e design de moda Gisliane Mariela de Oliveira, 35 anos. “Vou no último show da vida dele, no Mineirão, em novembro. Estou com o coração apertado. Aqui em casa todo mundo ama o Milton”, admite essa paulista que há mais de dez anos mora em Goiânia. Na última vez que Milton veio a Goiânia, no final de 2019, pouco antes da eclosão da pandemia de Covid, ela estava na plateia, cantando junto cada uma das canções do ídolo. “Minha mãe sempre ouviu muito MPB. Conheci Milton ouvindo Elis Regina cantando suas músicas. Ele já admitiu que foi apaixonado por Elis, né”, lembra.Para ela, Milton Nascimento preenche um lugar muito especial. “Não cresci com o meu pai. Ele nos abandonou. As músicas do Milton cumprem um pouco esse papel paterno. Elas me aconselham, elas traduzem o que estou sentindo, me consolam em momentos mais difíceis. É como diz uma de suas músicas: ‘Certas canções que ouço cabem tão dentro de mim, que perguntar carece, como não fui eu que fiz’”, cita. Gisliane chega a sonhar com ele. “Uma vez sonhei que chorava e colocava a cabeça no ombro dele. Acordei com essa sensação de acolhimento. Não sei como posso me despedir desse cara”, reconhece.Travessia, Ponta de Areia, Paula e Bebeto, Outro Lugar, Raça são apenas algumas das músicas do repertório de Milton que Gisliane ama incondicionalmente. “Eu tenho essa ligação com a música. Algumas roupas que criei já estiveram no palco do Rock in Rio e do Lollapalooza, vestidas por artistas. E quando eu era pequena, estudei em conservatório. Sei tocar violão e teclado, mas é claro que não profissionalmente. De vez em quando é óbvio que a gente relembra as canções de Milton. Tenho essa audácia, destruindo o repertório dele”, diverte-se. “É como já disseram: se Deus tiver uma voz, essa voz é a do Milton.”Não são poucos os que reconhecem em Milton Nascimento um marco em muitos sentidos, incluindo afinação perfeita, absoluta. Elis Regina, Ney Matogrosso, Caetano Veloso já expressaram essa admiração. Como compositor e letrista, ele também é reconhecido por seus companheiros mais próximos, como Beto Guedes, Lô Borges, Wagner Tiso, e por quem nunca abre mão de gravar suas criações, como Maria Bethânia e Gal Costa. Parte de uma geração de ouro da nossa música, Bituca sempre transitou por diferentes estilos e gerações, de Pena Branca e Xavantinho a Criolo, de Gilberto Gil a Tiago Iorc.Em torno de Milton, o grande capitão do Clube da Esquina, orbitam artistas que o enxergam como uma espécie de oráculo, de fonte de inspiração e aprendizado. No ano passado, alguns de seus sucessos ganharam releituras de uma turma formada pelas cantoras Céu e Luedji Luna e pelos intérpretes Vitor Kley e Brian Behr. Ele mesmo já fez participações em álbuns de Jota Quest e Skank. Nos últimos anos, Bituca tem sido acompanhado pelo carioca José Ibarra, de apenas 25 anos e integrante da banda Dônica, da qual também faz parte Tom Veloso, um dos filhos de Caetano Veloso. Sua arte mostra-se universal.Quando Milton coloca sua voz ímpar em uma canção, é um sonho que se realiza para quem compôs a música. Autores experientes, como João Bosco, ou iniciantes na carreira, todos sabem a importância dessa chancela e Bituca é muito democrático em suas escolhas, sem perder os critérios de qualidade. Isso fez com que em sua carreira ele ousasse em projetos mais autorais, trazendo a cultura popular para o centro do palco, participando de discos de roqueiros, tabelando com sambistas, com sertanejos, com cantores românticos. É como se repetisse: “Pra quem quer se soltar, invento o cais, invento mais que a solidão me dá”.Solto a voz nas estradasNinguém ensinou os caminhos da música para Milton Nascimento. O que ele ganhou foi estímulo para buscar sua própria travessia. Talvez ainda criança já soubesse que estava com o pé nesta estrada e que nada seria como antes. Era o som que o levava adiante e procurou outras pessoas para quem, como ele, cantar era buscar o caminho que vai dar no Sol. Encontrou primeiro Wagner Tiso, o maestro maior de sua carreira. E no interior de Minas, na casa dos pais adotivos, nas casas dos amigos que adotou, Milton, que já tinha o apelido de Bituca, iniciou a escrita de uma carreira em que seria tudo o que podia ser.A plataforma da estação foi a vida de seu lugar, ganhando o mundo, mas sem deixar de retornar às raízes. Com isso, trouxe consigo seus afetos, mostrando o talento dos amigos, carregando-os em suas jornadas, fazendo-os brilhar ao seu lado e, depois, sozinhos. Soltando a voz nas estradas, já sem querer parar, Milton superou fronteiras e ganhou o mercado latino-americano, compondo e cantando em espanhol e levando sua voz poderosa a outros espaços do mundo. E o mundo o ouviu atento, interessado, encantado. Era sua arte ligando Minas ao porto, ao mar, como as estradas de ferro que cortam as montanhas.Além das parcerias nacionais, vieram os projetos com quem tinha a oportunidade de ouvir Milton e seu canto celestial. Trabalhos com Paul Simon, Peter Gabriel, Sarah Vaughan, Mercedes Sosa e Björk foram alguns desses encontros. Essa projeção internacional, que o incluiu no circuito das turnês e grandes festivais nos EUA, Europa e Ásia, rendeu-lhe também cinco prêmios Grammy. Nessa jornada, Milton fez valer a letra de outro de seus sucessos: “Pra quem quer me seguir, eu quero mais, tenho o caminho do que sempre quis”. Isso sem abrir mão de uma linha artística eclética e com o apuro que que sua voz pedia.Crooner dos bailes da vida, com a alma repleta de chão, ele foi aonde o povo estava, incluindo suas manifestações mais genuínas. Muitas vezes, ele deu vazão à religiosidade mineira, cantando o Calix Bento, onde Deus fez a morada, e louvando o Cio da Terra, forjando do trigo o milagre do pão, conhecendo os desejos dessa terra que fornece a doçura da cana, encontrando a propícia estação para gerar vida. Com Cuitelinho, reunião de cantigas orais, ele deu o tom à narrativa do homem que buscou a felicidade entre paisagens de grande beleza e revoluções, mas sentindo a saudade que corta igual navalha.Se os Tambores de Minas ressoaram em um de seus discos, Milton também bebeu no som dos Beatles, que o acompanharam em sua formação musical. Para John Lennon e Paul McCartney, ele cantou: “Eu sou da América do Sul. Eu sei, vocês não vão saber. Mas agora eu sou cowboy, sou do ouro, eu sou vocês. Sou do mundo, sou Minas Gerais”. E com uma canção do amigo Beto Guedes, ele lamentou a morte de um deles: “Quem souber dizer a exata explicação, me diz como pode acontecer, um simples canalha mata o rei em menos de um segundo. Oh, minha estrela amiga, por que você não fez a bala parar?”Deixar a própria luz brilhar e ser muito tranquilo. Essa parece ter sido a filosofia que guiou Milton Nascimento em sua carreira, sempre conduzida com serenidade e discrição. Ele foi um artista dos palcos e das estradas, inquieto por novidades e aberto a influências que pudessem transformar e fazer evoluir seu trabalho. E foi com o trabalho que Bituca fez questão de se destacar, jamais com sua vida pessoal, que ele manteve reservada. Em entrevistas, Milton admitiu paixões platônicas por Elis e por Dina Sfat, para quem compôs a canção Cravo e Canela ao lado de Ronaldo Bastos, que também era fã da atriz.Nos anos 1980, Milton fez outra canção, desta vez para o ator River Phoenix, depois de ver a atuação do jovem astro nos filmes A Costa do Mosquito e Conta Comigo. O cantor obteve o contato da revelação de Hollywood com o amigo Quincy Jones para pedir a autorização de uso do nome do rapaz na música. Eles passaram a ser próximos, com direito a uma visita de River à cidade mineira de Três Pontas, onde Milton foi criado. Essa relação gerou boatos a respeito de uma relação afetiva entre eles, o que nunca foi confirmado. Milton preferia homenagear o amigo, sobretudo depois da morte prematura do ator.Bituca jamais se deixou pautar por versões a respeito de assuntos que devem ficar na intimidade. Se toda forma de amor vale a pena, como ele e Caetano Veloso atestaram em Paula e Bebeto, não há o que discutir a respeito. A voz sublime de Milton Nascimento se sobrepôs, ao longo de sua carreira, sobre qualquer curiosidade mesquinha. Nem mesmo os problemas de saúde que passou a enfrentar ganhou destaque além do que deveriam. Nos anos 1990, ele revelou sofrer de diabetes. O cantor se recuperou de uma fase difícil, quando emagreceu muito, mas nos últimos anos sua saúde voltou a ficar mais frágil.Prestes a completar 80 anos de vida – seu aniversário é 26 de outubro –, ele decidiu que já era hora de deixar os palcos, como se avisasse que gosta de poder partir sem ter planos. Esta última turnê simboliza a hora do encontro que também é a de despedida. Mas são tantos os sucessos, as trilhas, os discos inesquecíveis deste artista, sozinho ou com seus múltiplos e fiéis companheiros, que Milton já se transformou numa espécie de onipresença. Ele já não pergunta mais pra onde vai a estrada, não espera mais aquela madrugada, porque sua travessia se completou. Agora é a hora de renascer na luz de todo dia. A voz da liberdadePai, afasta de mim esse cálice! Afasta de mim qualquer tipo de cale-se! Quando Milton Nascimento fez a antológica gravação da canção ao lado de Chico Buarque – a música é de Chico e Gilberto Gil –, ele já era uma das vozes mais populares do Brasil a cantar contra a ditadura militar que vivíamos. Ao contrário de outros colegas de profissão, ele não foi preso ou exilado, mas era vigiado de perto, sobretudo porque insistia em fazer shows em eventos onde iam muitos estudantes. Em diversas entrevistas, Milton admitiu que correu risco de sofrer represálias por parte do regime e que se negaria a sucumbir passivamente.Quando a campanha pelas Diretas Já tomou conta das ruas, Milton estava no palanque, emprestando sua voz, seu carisma e sua força em prol da redemocratização. Ao lado do amigo Fernando Brant, integrante do Clube da Esquina, formulou um documento de apoio a Tancredo Neves, candidato da oposição no Colégio Eleitoral que escolheria o presidente da República. Mesmo com a frustração de uma eleição indireta realizada pelo Congresso, a iniciativa ajudou a catalisar o povo em torno do político mineiro e a voz de Milton cantando Coração de Estudante tornou-se um hino da vitória, mas também da morte de Tancredo.Em 1973, um de seus álbuns mais importantes, Milagre dos Peixes, teve faixas censuradas pelo regime militar. Sem poder mostrar suas letras, ele desafiou os generais e gravou as canções em formato instrumental. Recado claro de que não se submeteria à obtusidade dos donos do poder. Num disco posterior, Geraes, de 1976, Milton faz um duplo movimento, voltando-se para a América Latina ao mesmo tempo que mergulhou no universo mineiro com canções como Volver a los 17 – ao lado de Mercedes Sosa, que também lutava contra uma ditadura na Argentina – e Circo Marimbondo – imortalizada com Clementina de Jesus.Em 1994, Canção da América, na voz de Milton, tornou-se o hino de despedida ao piloto Ayrton Senna. Ele sempre cantou a liberdade e a emoção, a possibilidade de expressar sentimentos e ideias. Na política, Bituca nunca escondeu suas posições e opiniões. Ele teve proximidade com Juscelino Kubitschek – entoou até a canção popular mineira Peixe Vivo, trilha sonora dos tempos JK – e Tancredo. Presidentes das Gerais que ele soube cantar como ninguém. Minas das montanhas azuis, da Inconfidência, dos sonhos, dos versos. Minas onde Bituca cresceu músico e a quem dedicou canções, discos e inspirações. -Imagem (Image_1.2471711)