Não é fácil encontrar uma família mais cheia de problemas que os Karamázov. No último romance que publicou em vida, Dostoiévski oferece ao leitor uma galeria de personagens dúbios e fascinantes nesse enredo que envolve crime, ódio, ressentimento, inveja, devoção e maldade. Em torno do devasso Fiódor Karamazov, giram seus quatro filhos, cada qual com suas ambições e convicções, indo de um intelectual melancólico a um monge que beira o fanatismo religioso, com direito a um irmão que, diante do desprezo do pai que o teve em uma aventura amorosa fora do casamento, torna-se uma pessoa traiçoeira e perigosa.Considerado o principal livro de Dostoievski, ele tem concorrentes à altura a esse posto. O mais conhecido deles, certamente, é Crime e Castigo, a saga atormentada do jovem estudante Raskólhnikov, rapaz de origem pobre que é mantido na cidade grande graças aos sacrifícios da mãe e da irmã. Ele, porém, acaba se deslumbrando e ficando em apuros financeiros, o que o leva a cometer um duplo assassinato para roubar joias. O que mais interessa nesse trabalho, porém, são as acrobacias éticas que o personagem faz para se desculpar de seu ato hediondo. É um retrato impiedoso da psique humana.Suas tramas e personagens já fizeram o autor ser apontado como um precursor da psicanálise – é bom lembrar que Freud escreveu sobre o escritor russo o artigo Dostoiévski e o Parricídio. Mas sua presença, a partir do final do século 19, passou a ser constante em várias obras em que seus livros são citados nominalmente ou nos quais é possível identificar sua influência. Nesse rol, há menções e rastros que vão do niilismo de Nietzsche (que teria enlouquecido ao reproduzir, ele próprio e na vida real, a cena de um sonho do protagonista de Crime e Castigo) ao existencialismo de Jean-Paul Sartre.É inegável, porém, não encontrar semelhanças e referências aos seus principais livros – e elas são numerosas. Em O Idiota, por exemplo, Dostoiévski cria a figura de um nobre, o príncipe Míchkin, que parece deslocado, com sua ética e bom caráter inabaláveis, em um mundo em que só encontra falsidade e traição. É um libelo ao homem bom, mas sem que haja um final feliz. Os maus estão por toda parte, afinal. Em Os Demônios, ele revela os dilemas de pessoas envolvidas no assassinato de um jovem anarquista, num emblema dos choques entre ideias racionais e religiosas. É a Rússia cozinhando sua ebulição.Intelectuais com ótimas intenções e pouco senso prático, conflitos entre regimes arcaicos e ideias trazidas pelo Iluminismo do século anterior, olhares nada complacentes sobre as engrenagens burocráticas e as aparências da alta sociedade, jovens impetuosos e egoístas, velhos cínicos e aproveitadores. São tantos os quadros dos livros de Dostoiévski que chega a ser impossível enumerar todos. As denúncias sociais, as convicções de suas criaturas, as maneiras pelas quais elas levam salvação e desespero ao seu entorno têm um nível de profundidade raro, fazendo do escritor russo uma leitura prazerosa, mas também incômoda.Por outro lado, ele também sabe ser sarcástico com primor. Em O Duplo, outro livro que escreveu antes do período da prisão, ele imagina um pacato e monótono funcionário público que se vê substituído por uma versão mais versátil, simpática e competente de si mesmo. Novamente a alusão à psicanálise – e até a certos distúrbios mentais – pode ser enxergada aqui. Já no conto Bobók, Dostoiévski imagina uma grande balbúrdia entre pessoas mortas, enterradas em um cemitério. Pastiche de uma temática já abordada por autores canônicos, como o russo Púchkin, essa é uma aventura bem-sucedida do escritor pelo realismo mágico.O Adolescente, O Eterno Marido, Noites Brancas, Netochka Nezvanova, Uma Criatura Gentil, O Sonho de Um Homem Ridículo e tantas outros livros – romances, novelas e contos – demonstram a capacidade produtiva impressionante de Dostoiévski. Boa parte de toda essa obra monumental foi realizada sob a pressão do tempo e do orçamento doméstico apertado. Circunstâncias mundanas que só fazem destacar ainda mais o vigor e a qualidade de seus textos, escritos nem sempre sob as melhores circunstâncias. Ainda assim, são absolutamente essenciais para se entender a literatura dos dois últimos séculos.