Gabriela Lima

Há um ano, o jornalista Fabrício Cardoso deixava o jornal O POPULAR e voltava para São Paulo. Foi ficar mais perto da “mina” dele, como gosta de se referir à mulher, Mônica. Deixou em Goiânia colegas de trabalho que cativou como amigos, durante os sete anos como editor-executivo, e leitores que apreciavam seu texto leve, inteligente e sensível. Agora ele está de volta ao time, pelo menos uma vez a cada 15 dias, como cronista na coluna Crônicas e Outras Histórias.

Gaúcho, torcedor do Xavante, Fabrício é formado em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre (RS). Antes de chegar ao POPULAR, esteve à frente de redações do Jornal de Santa Catarina e Diário de S.Paulo. Nos últimos meses, tem se dedicado a projetos de relações públicas, reputação e liderança de pensamento e, agora, crônicas. Também realizou o sonho de se tornar professor de Português, concluindo a faculdade de Letras com o estágio na Educação de Jovens e Adultos (EJA), onde deu aulas a alunos sírios, haitianos e angolanos. “Vivi em 20 semanas emoções que só o Jornalismo proporciona”, relata.

Fabrício esteve como cronista fixo em Magazine entre 2015 e 2019, mas deixou o espaço para se dedicar a processos de transformação digital, como os podcasts que implantou na época no site do POPULAR. Agora, ele assume em substituição à escritora e historiadora Lena Castello Branco, que morreu no dia 23 de outubro.

O jornalista retorna falando justamente de despedidas, com um texto comovente sobre o cicloativista Édson de Melo Alves, o Ti Édis, que durante anos foi diagramador do POPULAR e morreu no dia 13 de outubro. São os ciclos da vida, inícios, fins e recomeços registrados em nossas páginas e plataformas digitais.

Fabrício Cardoso retorna como cronista do POPULAR

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Matéria - Magazine

Novo ciclo

O mundo fica um lugar menos respirável quando um poeta se vai. Na semana em que perdemos Gilberto Mendonça Teles, como um tributo à beleza nascida do improvável, relembro uma treta em versos entre ele e outro poeta de mancheia, o Carlos Willian Leite, o CW.Antes das estrofes, um pouco de contexto: em 2017, Gilberto propôs à Lei Goyazes a publicação de sua poesia completa, que, acompanhada de uma fortuna crítica, resultaria num calhamaço de 3 mil páginas. Como relator do projeto no Conselho Estadual de Cultura, CW precisou desclassificá-lo pelo ferimento a uma das regras do edital. O livro deveria estar esgotado, mas o relator encontrou 500 exemplares restantes da última tiragem da Editora Vozes.Em digestão ao veto, Gilberto verteu um poema dedicado a CW em um de seus livros. Começava ali um diálogo literário que vale bisbilhotar.Parecer: de um perito em edição, no CerradoThe dream is in pursuir.William Carlos Williams(Gilberto Mendonça Teles, 2017)Por aqui não é bem o ser que se propõe como verdade, e sim o não do parecer na contramão da ambiguidade.O regulamento é bem claroLivro esgotado e até no esgoto e, como sabem, sou avaro não com os meus, mas com o do outro.Nas pesquisas que fiz de boca entre os livreiros de Goiânia encontrei muita coisa louca desse Autor, cheio de artimanha.Em matéria de livraria esta cidade é bem dotada: além da beleza, a mania de ser maior que a pátria amada.Logo, o meu parecer é contra a reedição e seu porvir,tenho mesmo jeito de lontra e o sonho está no perseguir.Resposta a um poeta federal, fora do Cerrado(Carlos Willian Leite, 11/9/2021)Nenhuma palavra bastase o gesto é temerário não posso ser entusiastana contramão do calendárioSeus versos, diamantes livres,frente a um parecer obtusosoando falso e difusopelas mãos de um falso ourivesMas cabe aqui um parêntese em nome da verdade e do direitopois todo livro é uma síntesedas agruras que corroem o peitoSegui o regulamentode 10 anos esgotadoe meu indeferimentofoi pelo estoque no mercadoFica aqui o meu abraço,querido amigo doutormas comprei seu calhamaçona semana anteriorResposta ao perito(Gilberto Mendonça Teles, 13/9/2021)É possível que compraste,mas se leste, não sei não;há tantos livros e este trasteestava na contramão.Foi melhor que assim ficasseno meu prato de torresmo:vou depois tomar um passee agradecer-te assim mesmo.Resposta a um poeta federal, fora do Cerrado(Carlos Willian Leite, 14/9/2021)De todas as fontes que bebientre copos e garrafas de ginestão seus poemas que lie hoje moram dentro de mim.Ainda que lhe soe clichêlápis-lazúli em mãos de plebeusei, há outros vivendo em vocêe você que há nos outros sou eu.Ah, os poetas. É um tipo de gente que extrai beleza até dos sentimentos menos nobres. Talvez sejam os únicos humanos que fazem coisas que realmente importam.

Até na treta os poetas nos salvam a vida

Crônicas e Outras Histórias

Matéria - Crônicas

As ruas mostram o que pensam, disse João do Rio. E isso talvez explique a obsessão pela vida plastificada dos condomínios, acrescento. A distância do pensamento de quem apenas vegeta na miséria pode ser terapêutica. De minha parte, prefiro a verdade com suas assimetrias. Mas há quem goste a ponto de pagar caro por uma perfeição fingida, que só existe intermediada por uma guarita.João do Rio definitivamente não moraria ladeado por milicianos na Barra da Tijuca, se vivesse hoje. Li dias atrás A Alma Encantadora das Ruas. O que ele faz quando sai pelas ruas da cidade ainda convulsionada pelo golpe militar (sempre eles) da proclamação da República é uma aula de observação, uma rara capacidade de capturar o mundo com os cinco sentidos. João do Rio definia-se como um vagabundo no sentido mais cru da etimologia: aquele que vagueia por deleite.Nessas andanças, lançou um olhar àqueles que, historicamente, são tratados como adorno da paisagem onde só a grana define a subjetividade. Raramente nos importamos com os sentimentos de quem lava as privadas onde fisiologicamente nos aliviamos. Quanto mais silenciosos forem, tanto melhor. João do Rio contrariou isso.Claro, o fez sob as condições do seu tempo. São constrangedoras as passagens plenas de machismo e racismo. Sou tido como branco, o que me facilitou cruzar as 365 páginas do livro sem me deter em julgamentos morais do autor. Dele, aproveitei a habilidade de pintar cenários em palavras para ver, de soslaio, aquilo que na virada do século passado não merecia atenção. Foi um exercício tão triste quanto revelador.Quando foi a um presídio, assim descreveu o desconforto das pessoas com a truculência dos guardas carcerários: “Percebe-se o terror das pessoas importantes e o desejo secreto de apedrejá-las, essa mistura antagônica que faz o respeito da ralé”. Aqui lembrei do historiador Luiz Antonio Simas, que assinou o prefácio dessa edição. Quem fica recomendando enfrentamento de peito aberto é o burguês, porque terceiriza a treta para a polícia. O malandro sabe que só encontra uma cota de paz quando se esgueira pelos vácuos da opressão.Já dentro das galerias da penitenciária, onde detentos majoritariamente pretos agonizavam em cubículos insalubres, fez uma observação que serve de argumento a favor do abolicionismo penal. “Rapazes, dias antes honestos, fazem o mais completo curso de delitos e infâmias de que há memória. Chega a revoltar a inconsciência com que a sociedade esmaga as criaturas desamparadas”. Hoje seria chamado de comunista.Mas o que mais me atordoou foi ter conhecido Olívia. Descrita por João do Rio com adjetivos cruéis - pequena, feia, magra, olheirenta -, era uma “criaturinha de quinze anos e parece ter mil”. Aquela jovem na nossa jovem república cumpria pena na cadeia feminina por infanticídio. “Matou o próprio filho ao nascer, mas antes devia ter matado outros”, sugere João do Rio. “Tudo quanto se lhe perguntar sobre seu horror à maternidade, Olívia é incapaz de negar”, completou. Olívia tinha 15 anos. Quinze anos. Ainda bem que tudo mudou e hoje ninguém mais obriga crianças a parir…De todo esse mergulho pela degradação imposta pelo Brasil à maioria de seus filhos, João do Rio interpretou as inclinações políticas mirando as tatuagens. “Pelo número de coroas que eu vi, quase todo esse pessoal é monarquista.”Se você impõe a violência como padrão, qualquer mudança parece se encaminhar para o pior. Num país assim, sádico, poucas coisas são tão férteis quanto o medo.

Poucas coisas são tão férteis quanto o medo

É, as coisas andam estranhas na vizinhança. Há um encantamento pelo bizarro, um certo gozo pela violência que, dessa vez, me pega cansado. Até para o desespero me falta energia.

Ok, existem razões bem concretas para temores. Esse pessoal, no poder, nunca é inofensivo. Vão testando limites, provocando estresse, sem aceitar abrandamentos dos domadores. Já vimos isso: quem tenta apaziguar, sai sangrando. Se um contrapeso democrático sob ataque fraqueja, tomam conta da bodega inteira, agora talvez até sem as formalidades de uma minuta, sem um blindado com escapamento exalando fumaça, sem um cabo e um soldado, com “todo o respeito”. A cada retorno, a erosão aumenta.

A corrosão se alastra também para fora dos palácios. É uma turma que colhe virtude com sacrifício alheio. Defendem a destruição, porque qualquer criança com peças de Lego na mão sabe que isso é mais fácil do que construir, dar forma a alguma coisa minimamente coordenada e coerente. O culto ao individualismo, ao salve-se quem puder, desdenha das saídas coletivas para os problemas que de fato nos afligem. Não é um tempo para sonhos.

Mas não contem comigo para menosprezar a subjetividade das pessoas. Ninguém precisa de mestrado em Ciência Política para desenvolver noções de certo e errado. Nenhuma escolha eleitoral é burra. Tampouco creio em inclinações sádicas nem desejos sinceros de supressão do outro - ainda que o desconforto com o diferente seja flagrante. Só não há clima para paz e amor enquanto uns poucos gastam num fim de semana o que muitos levam anos para ganhar.

E me entristece que a raiva das massas, absolutamente legítima, tenha sido capturada politicamente para ser pulverizada em destinatários errados. Falam tanto em destruir o “sistema”, mas a rigor essa turma é a face mais hostil, violenta e desavergonhada da dinâmica que impede os pobres de entender a origem da própria pobreza. É mais fácil culpar os travestis, o mindset e o diabo do que os verdadeiros responsáveis.

Enfim, os caras são intelectualmente desonestos. Não defendo prostração, resignação. Mas dessa vez não vou ao chão, intoxicado pelas projeções de catástrofe, por mais palpáveis que sejam. Nem sairei por aí, desperdiçando pólvora verbal. Só quero um pouco de sabedoria para viver o tempo que desgraçadamente me coube viver.

Fazer o meu melhor no dia a dia. Voltar-se um pouco para mim, para meus afetos, e esperar a tempestade se dissipar. Sem saber a verdadeira causa do mal-estar, não se resolve nada. Espero que nos façamos ouvir antes do fim da democracia.

Ao falar do Tokyo Yakult Swallows, time de beisebol que lhe sequestrou o amor apesar dos insucessos esportivos, Murakami avisou: “A verdadeira sabedoria não está em ganhar, mas em saber perder bem”.

Nossos netos vão se orgulhar de estarmos lidando com tudo isso entre os derrotados.

Manual de autoajuda para derrotados

Fez 35 anos que a luz bruxuleante do poste se derramou no cano de um revólver, inundando minha visão de um brilho prateado. Aquele reflexo meio agressivo aos olhos tinha potencial para ser a derradeira imagem antes do meu mergulho irreversível na escuridão da morte. Porque em seguida ouvi um disparo.A mim convém camuflar a covardia de impulso ou instinto, porque, logo após o tiro, saí em disparada, deixando para trás amigos e a namorada. Corri uns 200 metros, quando senti a calça umedecer. Arriei-a e vi, da nádega direita, o sangue jorrar feito um encanamento furado. Deitei ao chão fresco do início de outubro e experimentei a solidão dos moribundos.Se estou aqui escrevendo as memórias daquele meu aniversário de 1989, foi porque sobrevivi à imprudência de sair a pé pelas madrugadas da periferia de Porto Alegre, de longe a cidade mais violenta onde morei. Sou vaidoso, mas não a ponto de achar que Deus perderia tempo com intervenções em meu favor. Credito à sorte o fato de a bala ter perdido velocidade ao rasgar meu então rijo glúteo, legando como sequela apenas uma cicatriz inacessível a míopes.A noite que poderia ter sido a minha última volta sempre a cada aniversário. Acolho as lembranças como símbolo de um triunfo, ainda que ausente de mérito pessoal, sobre os perigos a que nos submetemos quando jovens, pela ilusão da onipotência. Mas só agora, ao celebrar meus 51, tive a dignidade de pensar no destino do outro personagem dessa história. Falo do cara que, ao fim dos anos 1980, saía pela noite gaúcha a assaltar moleques com um revólver prateado em punho.A coisa se deu pelo contraste.Estava em Paraty, me equilibrando sobre as pedras de mãos dadas com minha mina. Embora não seja dever de ninguém evitar os tombos de quem se ama, aceito a ocasião como uma perfeita metáfora do nosso quarto de século juntos. A confortável ideia de reencontrá-la à noitinha me faz caminhar com destemor, apesar da minha eterna inclinação ao tropeço.Também cabem meus filhos nesse inventário das boas coisas que, de graça, me houve ao longo da vida. Para além da potência biológica que nos ata às vidas que geramos, amo-os pelos homens que se tornaram. Enfrentam as hesitações com integridade. Encaram os absurdos normalizados pelo mundo com um humor cheio de esperança.Sou grato pelo meu pai, que se foi há quase cinco anos. Por vezes, a saudade dele chega de forma tão sorrateira que preciso me curvar, com as mãos apoiadas nos joelhos, até a dor passar. Cada dia mais admiro a sobriedade da minha mãe diante da finitude, das limitações da velhice e da solidão da viuvez. Parecia impossível que ainda pudesse me ensinar tanto nessa altura da existência. Tenho uma irmã e uma irmão que também me ajudam a caminhar, porque, a despeito da distância geográfica, sinto-os sempre perto.Tenho sólidas amizades, que me admiram no que há de mais banal em mim. É um privilégio. Minha vida é boa. E a do sujeito que, com um tiro, quase impediu o contato com a beleza que me esperava?Penso nele sem rancor, sem querer apequená-lo com a grandeza da minha sorte. Examino, sem ceder à mesquinharia da vingança, a possibilidade de ele ter morrido cedo, à luz das decisões que tomou.Penso também na força das circunstâncias sobre as escolhas de todos nós.