Cerebral. Racional. Contido. Obsessivo. João Cabral de Melo Neto, o engenheiro da poesia brasileira, cultivou a associação de sua obra com termos como esses. Buscou mesmo o antilirismo e o cálculo preciso do verso. Por isso é com deleite e surpresa que o vemos surgir entre bailarinos de flamenco e toureiros, jogando futebol na adolescência e olhando embevecido para os cinco filhos.O espanto surge nas páginas da recém-lançada Fotobiografia João Cabral de Melo Neto. E, além de mostrar o homem por trás do poeta, ilumina também a mulher. Se o trabalho da editora Valéria Lamego e do poeta Eucanaã Ferraz, organizador do livro, permite revelar a face íntima do autor que proclamava sua “ausência de biografia” - como frisa Ferraz na introdução -, muito se deve a Stella Maria Barbosa de Oliveira.Primeira mulher de João Cabral, ela o acompanhou mundo afora por quatro décadas e em oito dos nove países em que o escritor foi diplomata. “Minha mãe era arquivista, adorava organizar papelada”, conta Inez Cabral, segunda dos cinco filhos da união.O casamento durou de 1946 até a morte de Stella, em 1986, quatro anos antes de João se aposentar da diplomacia. Ele se uniria ainda em 1986 à poeta Marly de Oliveira, com quem foi para o Porto, seu último posto estrangeiro. Ficaram juntos até a morte dele, em 1999, aos 79 anos.Entre os registros responsáveis por humanizar a figura do escritor, muitos são cliques atribuídos a Stella. “Ela adorava tecnologias e máquinas. Do meu ponto de vista, ela tinha talento para a coisa, mas nunca levou muito a sério”, conta a filha.O olhar de Stella se dividia entre o hobby e a consciência da posteridade. “Montava álbuns, separava as cartas e matérias sobre ele, guardava os rascunhos (pois é, meu pai sempre fazia rascunho das cartas) junto com as respostas, acho que era seu passatempo preferido”, diz Inez.O pai, “carinhoso e brincalhão” na infância dos filhos, “mais contido” na adolescência, assinava boletins da escola após Stella vê-los e dar “a bronca devida”. Ela fazia o resto.Era nas tarefas auxiliada pela babá, Adela Pinto Coelho, a Tetinha, que aparece no livro em Sevilha ao lado de Isabel, a quarta filha, e dela e de Inez, em Genebra, diante de uma escultura de Mary Vieira, objeto de um dos poemas de “Museu de Tudo, de 1975.É bastante presente no livro, aliás, a relação de João Cabral com artistas, que se inicia com Vicente do Rego Monteiro, na juventude no Recife, e tem um período notável em Barcelona, onde conviveu com Joan Miró e Joan Brossa. Mas a lista de gostos também se estende à tauromaquia e ao flamenco, pilares da cultura da Espanha, país do coração do poeta diplomata.Stella não compartilhava do “senso estético” do marido, conta Inez. Gostava de ler romances policiais e filósofos católicos, de música francesa e MPB e não apreciava as touradas, mas não reclamava. Ia a shows de flamenco se fosse com casais amigos. “Se não, ele ia sozinho. Tenho para mim que ele preferia.”O pai ia na frente para o seguinte cargo diplomático; “mandona e decidida”, a mãe “se encarregava de encaixotar, de providenciar toda a mudança”, conta Inez. “Acho que ele era tipo o filho dela.”“Ela datilografava os poemas dele, depois ele corrigia, ela datilografava de novo ad infinitum. Ela também guardava e arquivava toda a papelada dele. Comprava as suas roupas, ele detestava fazer compras. Só frequentava farmácias e livrarias”, conta Inez.“Stella foi de alguma forma também o nosso guia”, resume a editora Valéria Lamego. Sem as notas de Stella, não seria possível saber que a mão que em maio de 1979 aperta a do poeta - representante do Brasil no Senegal, cargo extensivo a mais três países africanos - era a de Frederick Akuffo, chefe de Estado de Gana, executado um mês depois.Ou conhecer os detalhes das esplêndidas fotos feitas ao longo do Capibaribe por Delson Lima para uma edição ilustrada de “O Rio, nunca publicada, deixando as imagens inéditas desde 1954 até agora.Naquele ano, em que “O Rio foi premiado pela comissão do 4º Centenário de São Paulo, estava no Brasil, afastado desde o ano anterior pelo Itamaraty sem vencimentos, acusado injustamente de colaborar com o inimigo comunista.Esse amargor não é muito detalhado no livro, ao contrário de outros sentimentos do poeta antissentimental. Esses surgem amparados pelo fino garimpo de trechos de entrevistas feito por Eucanaã Ferraz para acompanhar as fotos, que também reproduzem manuscritos e documentos.Com o livro, sai de cena “o poeta mais velho, mais sofrido”, quase cego dos anos 1990 que a atual geração conheceu na mídia, diz Lamego. “Agora a gente apresenta o homem.”-Imagem (1.2211352)