Um orixá está de aniversário. Sim, um orixá está fazendo 80 anos nessa existência! É assim, como uma entidade, um ser quase mágico e pleno de sabedoria que o cantor e compositor Gilberto Gil é tratado por muitos. E as religiões de matriz africana são presentes e constantes na vida desse homem que sempre valorizou essa ancestralidade, que recentemente comandou um projeto para recuperar e registrar cantos e ritos do candomblé em homenagem a Mãe Carmen, yalorixá do notório Terreiro do Gantois, em Salvador, lar de Mãe Menininha. E na divulgação desse trabalho, lá está Gil de orixá.O filme, que retrata as gravações do disco Obatalá – Uma Homenagem a Mãe Carmen, é algo primoroso, mas apenas uma das facetas desse baiano que estudou Administração de Empresas na Universidade Federal da Bahia, mas que, depois de ganhar o primeiro violão de sua mãe, uma professora primária, teve a certeza de que seu caminho estava na música. Desde os 10 anos, essa sua veia artística vinha sendo estimulada, quando foi matriculado na Academia de Acordeom Regina. Sim, o acordeão foi o instrumento pioneiro na carreira artística de Gil, tendo reverberações no decorrer de sua produção.Em seus mais de 60 anos de estrada (ele começou ao acordeão no grupo Os Desafinados, em 1959), Gil transitou por vários movimentos, criando a Tropicália, fortalecendo novidades, sempre marcando o conjunto da música brasileira, seja atuando diretamente, seja lançando sua imensa influência. Essa herança está na exposição virtual O Ritmo de Gil, colocada recentemente no ar em homenagem a suas oito décadas de vida e que pode ser vista na plataforma Google Arts & Culture. É uma linha no tempo rica como poucas, composta por um acervo com quase mil vídeos digitalizados e cerca de 41 mil imagens.Esse apanhado demonstra a incessante curiosidade e capacidade ímpar de se aliar ao que poderia enriquecer seu trabalho, provocando transformações. Uma exposição no ambiente virtual tem tudo a ver com sua trajetória, marcada por abraçar as novas tecnologias. Ele chegou a participar, um tanto inusitadamente, da famosa Marcha contra a Guitarra Elétrica, em 1967, convencido por Elis Regina. Ao perceber o erro, inseriu as mesmas guitarras na antológica apresentação da canção de Domingo no Parque, no Festival da Música Brasileira da Record do mesmo ano, ao lado dos roqueiros dos Mutantes.Do acordeão da infância à guitarra de seu tempo tropicalista, Gilberto Gil nunca mais caiu na esparrela de virar as costas para o que acontecia de novo no cenário musical. Com isso, ele produziu discos ecléticos entre si, mas sempre com sua genialidade. Compôs e gravou rock, reggae, samba, jazz, música de carnaval, lamentos sertanejos e canções de protesto. Em todas, imprimiu sua marca, inovando e improvisando, revelando novos caminhos sonoros que guiariam nomes como Caetano Veloso, Jorge Benjor e Milton Nascimento, levando a todos e a si mesmo uma filosofia estética que bebe em diversas fontes.Estar em tantos lugares ao mesmo tempo, saber dialogar com os diferentes tempos que atravessou e manter a vitalidade de uma criação inquieta são características de um homem que, segundo ele próprio, nasceu para fazer música e ter filhos – ele tem centenas de canções e colocou no mundo oito pessoas, que já tiveram outras pessoas, em uma descendência cheia de arte que acaba de ganhar uma série, Em Casa com os Gil, no streaming Amazon Prime Video. Não deixa de ser uma forma interessante de observar o terreno onde tanta criatividade é cultivada, onde uma base da música brasileira está fundada.Quando subo nesse palcoPouca gente deve se lembrar que Gilberto Gil e a cantora Nana Caymmi foram casados. Quem observar atentamente o documentário Uma Noite em 67, que mostra os bastidores da apresentação do cantor da música Domingo no Parque, a moça que lhe dá um beijo antes de ele subir no palco é Nana. A relação acabou, mas a amizade permaneceu por todas essas décadas. E continuou também a admiração de Gil pelo patriarca da família, Dorival, referência inescapável da música brasileira da segunda metade do século 20, sobretudo para a geração de baianos que buscou em sua sonoridade uma arte genuína.Outro baiano famoso, João Gilberto, um dos pais da Bossa Nova, é mais uma baliza para a inspirada geração de Gil. Mas também há Luiz Gonzaga, Pixinguinha, Cartola, Noel Rosa, e na obra de Gil estão todos lá. Seu perfil camaleônico o levou a gravar os grandes sucessos do Rei do Baião em um disco com músicas juninas, mas também fazer versões do amigo Bob Marley e fazer um show – que ele trouxe em uma das edições do FICA, na cidade de Goiás – apenas com reggaes. Do primeiro samba gravado no Brasil, Pelo Telefone, de Donga, ele criou uma canção para saudar os novos tempos, a música Pela Internet.Para quem ajudou a fundar o Tropicalismo, que relê símbolos nacionais e os fagocita de outras formas, numa espécie de prosseguimento do projeto dos modernistas, não chega a surpreender esse tipo de fome cultural. A Tropicália foi o primeiro cartão de visitas da turma composta por Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Zé, Torquato Neto, mais tardiamente também por Gal Costa, mas todos que continuaram na estrada não caíram na armadilha de se identificarem apenas com aquela fase, que tinha um contexto específico. Era final dos agitados anos 1960, de cultura hippie, revolução sexual e com o lema “é proibido proibir”.Essa filosofia não foi abandonada por Gil, como provam trabalhos icônicos, como os álbuns Expresso 2222, de 1972, Refazenda, de 1975, e Realce, de 1979. Lá está o espírito rebelde e intenso de discos como, por exemplo, Gilberto Gil, de 1968, no qual, ironicamente, o cantor aparece na capa trajando, em tom de paródia, o fardão da Academia Brasileira de Letras. Não imaginava ele, 54 anos atrás, que aquela gozação era na verdade profecia e que, em 2022, ele iria mesmo ser um imortal da ABL. Aliás, Gil, em seu discurso de posse, fez referência a esse fato, mostrando que o tempo muda pensamentos e pessoas.A vida é dinâmica, um vai-e-vem constante, e Gil, ao lado do grande parceiro Caetano, revisitou a Tropicália 2, num outro disco de grande repercussão, lançado em 1993, e que incluía sucessos, como Haiti e Nossa Gente. No ano seguinte, gravou seu Acústico MTV, registrando, com novos arranjos, vários de seus principais sucessos, como o hino de quem foi criança nos anos 1970 e 1980 (Sítio do Pica-Pau Amarelo) e A Novidade, sucesso com Os Paralamas do Sucesso. Nem mesmo um problema renal grave o tirou de combate. Hoje, recuperado e aos 80, ele parece ainda mais sedento de mutações e novos horizontes.Mesmo calada a boca, resta o peito“Lá em Londres, vez em quando eu me sentia longe daqui.” Lá em Londres, onde por sorte ou castigo Gilberto Gil deu de parar, em uma viagem forçada ao lado do amigo Caetano Veloso depois de serem presos e exilados pelo regime militar. Em 27 de dezembro de 1968, poucos dias depois da decretação do famigerado AI-5, o conjunto de medidas de exceção mais duras da ditadura, os dois baianos, já famosos e em plena criação, foram detidos depois do sucesso da canção Divino, Maravilhoso, um dos hinos da Tropicália e que traz uma letra de protesto contra o arbítrio do governo do general Costa e Silva.Sem acusações sólidas, tendo que responder a perguntas sobre crimes inexistentes, eles passaram dois meses presos em um quartel do Exército, experiência detalhada por Caetano no volume de memórias Verdade Tropical e, mais recentemente, no documentário Narciso em Férias. Na época, além de amigos e parceiros musicais, Gil e Caetano eram concunhados – a primeira esposa de Caetano, Dedé Gadelha, mãe de seu filho mais velho, Moreno, é irmã de Sandra Gadelha, com quem Gil se casou logo após ser solto, mãe de três de seus filhos (Preta, Pedro e Maria Gil). Ambas as famílias viveriam um período difícil.Até a metade daquele ano, os dois permaneceram sob intensa vigilância, numa espécie de liberdade condicional. Eles foram proibidos de fazer manifestações políticas públicas, já cientes de que deveriam deixar o País, o que aconteceu em julho de 1969. O destino foi o bairro de Chelsea, na capital inglesa, onde formariam uma espécie de república artística de resistência, convivendo com a tristeza por estarem distantes de sua terra, mas também compondo com efervescência, participando de festivais europeus e gravando discos. Suas casas também eram constantemente visitadas por artistas brasileiros. O momento mais quente da Tropicália havia passado, os festivais de música decaíam e o Brasil mergulhava na fase mais sombria da ditadura, mas a arte dos dois baianos permanecia viva. Gal Costa foi, nesta época, uma embaixadora de suas canções e até nomes que não tinham ligação estética com ambos traziam sua lembrança para cá. Talvez o melhor exemplo disso seja Roberto Carlos, o líder da Jovem Guarda que mantinha até certa rivalidade com os tropicalistas, que os visitou em Londres e compôs a canção Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos, em alusão à cabeleira que Caetano ostentava na época.Ali Gilberto Gil, uma verdadeira esponja para amealhar conhecimentos, redirecionou sua arte. O final dos anos 1960 e início dos anos 1970 foram uma sopa cultural na Inglaterra e ele soube dialogar com esses movimentos, enveredando pelo rock psicodélico, por iniciativas alternativas que iam da França à Alemanha. Havia muitas vanguardas e eles não perdiam a oportunidade de estar em contato com elas. Ao mesmo tempo, talvez estimulado “naquela ausência de calor, de cor, de sal, de sol, de coração pra sentir”, Gil voltava às paixões básicas, indo do samba aos ritmos nordestinos de Jackson do Pandeiro e Riachão.Eles só voltariam em 1972, com Gil trazendo no colo seu primeiro filho com Sandra, a quem todos chamavam de Sandrão, ou Drão – sim, a famosa música com esse título é dedicada à ex-mulher, depois que se separaram. E logo que chegou mostrou que seu repertório, já capaz de produzir maravilhas como Aquele Abraço, estava ainda mais refinado, complexo, genial. A prova é o antológico Expresso 2222, álbum revolucionário lançado logo quando retornou, onde está gravada, inclusive, Back in Bahia, sua canção do exílio. Dois anos depois, ele faria outra gravação histórica, a formidável Maracatu Atômico. Com carreira internacional consolidada e sucesso crescente no Brasil, Gilberto Gil, mesmo olhado de esguelha pela ditadura e já tendo sido perseguido por ela, não se intimidou. Suas canções políticas continuaram e talvez a mais emblemática delas seja Cálice, parceria com Chico Buarque (outro que precisou viver fora do Brasil por conta do regime autoritário), lançada em 1978 e que clamava, em metáforas incríveis, por liberdade de falar, de gritar. Os discos Refazenda e Gil Jorge Ogum Xangô, este último em parceria com Jorge Ben (este era o nome dele na ocasião), revelam movimentos em direção às suas origens.Em 1989, Gilberto Gil iniciou sua única experiência num cargo eletivo. Sua pretensão inicial era ser candidato a prefeito de Salvador, mas disputas no seu partido, o PMDB (depois se filiaria ao PV), o levaram a concorrer e ganhar uma cadeira na Câmara de Vereadores. Com uma pauta de defesa da cultura, reforçou os laços da cidade com a África e chegou a ir ao plenário de bata, sendo criticado por isso. Não quis repetir a experiência nas urnas, mas em 2003 assumiu o Ministério da Cultura no governo Lula. Em seis anos, implementou projetos de patrimônio cultural e descentralizou a gestão. Saiu da pasta elogiado pelo trabalho.Um doce bárbaro“Com amor no coração, preparamos a invasão”. E quantos corações aquele quarteto de baianos invadiu e conquistou? Em 1976, a reunião entre Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia se concretizou em um disco e um show inesquecíveis. Tão inesquecíveis que eles repetiram a dose, em um projeto especial em 2002, que gerou um documentário e um DVD, inspirando ainda o enredo da Mangueira, com os quatro desfilando de verde-e-rosa pela Sapucaí, para delírio do público, em 1994. Tão inesquecível que Gil, poucos dias atrás, voltou a ventilar mais um revival do grupo, atiçando os fãs.Em toda sua carreira, Gil sempre adorou estar acompanhado. Nunca teve problema em compor com parceiros, constantes ou acidentais. Frequentemente lança projetos conjuntos com outros grandes nomes da MPB e abre seus discos para cantar em coro com alguém de quem goste. Já no longínquo 1967, na apresentação de Domingo no Parque, lá estavam no palco Rita Lee (de quem é compadre) e os irmãos Batista fazendo percussão e back vocal. Em 2000, apresentou uma pérola com o disco Gil e Milton, em que compartilha um disco inteirinho com outro oitentão de sua envergadura, Milton Nascimento.Nos últimos anos, Gil continuou na mesma toada. Em 2012, gravou seus sucessos em um DVD e um show para a TV com Caetano Veloso e Ivete Sangalo. Em 2015, comemorou os 50 anos de carreira com Caetano no álbum e turnê Dois Amigos, Um Século, show de voz e violão com os dois gênios se complementando. Em 2018, estabeleceu parceria com a comadre Gal Costa e o roqueiro Nando Reis na turnê Trinca de Ases. Em todo esse tempo, gravou com Jorge Ben Jor, Maria Bethânia e sua última turnê teve Adriana Calcanhoto como convidada. Agora, ensaia para pegar a estrada com a família inteira como trupe.Essa abertura criativa rendeu algumas passagens únicas. Certa vez, João Donato apareceu em sua casa em Salvador, o fez perder um compromisso, ficou lá para dormir sem a menor pressa e, no final de tudo isso, tinham nas mãos a canção A Paz. Outra vez, ao ouvir um comentário de Caetano Veloso sobre o filme Superman, de 1978, foi para o quarto, passou a noite em claro e de manhã a canção Super-Homem estava pronta. Jorge Mautner, Tom Zé, Sérgio Mendes, Marisa Monte, Naná Vasconcelos, Chico Science, Elza Soares, Alcione, Dominguinhos, Zeca Pagodinho, todos já estiveram com Gil. E quem não quer estar?Com vários Grammys na prateleira, projetos especiais no exterior, shows da África ao Japão, Gilberto Gil é internacionalmente conhecido e reconhecido. Já dividiu o sagrado palco do Carnegie Hall, em Nova York, com Elton John e Sting; já gravou nos estúdios de Quincy Jones; já cantou com Stevie Wonder, com Jimmy Cliff. Um dos artistas escalados para a abertura das Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016, ele participou da cerimônia ao lado de Caetano e Anitta. Já fez até um pocket show no plenário da ONU, tendo o então secretário-geral Kofi Annan como percussionista. Quem manda é a deusa-música, ora!As minhas preferidasUm artista como Gilberto Gil está presente em muitos momentos da vida de seus fãs. Por isso, cada um terá sua playlist preferida. Aqui vai a minha.Esotérico – Canção de amor imortalizada não só na performance de Gil, mas sobretudo no dueto de Gal Costa e Maria Bethânia no álbum dos Doces Bárbaros.Sítio do Pica-Pau Amarelo – Música feita especialmente para o seriado da obra de Monteiro Lobato na Rede Globo, em 1977, atravessou gerações e tem cheiro de infância.Tempo Rei – Nesta música lançada em 1984, que marca uma fase mais pop de Gil, ele fala, com seu costumeiro tom filosófico, de como tudo é provisório, até a vida e o mundo.Toda Menina Baiana – Quase um hino de nossa brasilidade, esta canção é uma aula de História, trazendo o suingue da Bahia que este Filho de Gandhi sabe tão bem usar.Se Eu Quiser Falar com Deus – Esta composição, de caráter bem existencial, fala de fé e humildade. Lançada em 1981, até hoje é um de seus grandes sucessos.Andar com Fé – Nos momentos mais difíceis, como este que estamos vivendo no Brasil, é sempre bom cantarolar algo que mantém viva a esperança para que ninguém desista.Cálice – Hino político em parceria com Chico Buarque, a canção é um manifesto contra o autoritarismo. É bom lembrar da música quando se quer flertar de novo com o arbítrio.Parabolicamará – Inserindo um arranjo de berimbau, ele fala nesta criação de como a tecnologia poderia mudar nossas vidas, ainda quando essa revolução estava começando.Domingo no Parque – Essa música relata um crime que de fato aconteceu em Salvador. Gil fez da história trágica uma obra-prima da MPB e um cartão de visitas para si próprio.Drão – Música de amor para a ex-mulher? Sim, mas não mais de um amor físico e sim de uma paixão que já existiu, deixou marcas, filhos, um sentimento de gratidão e certa culpa.