O trabalho é minucioso, requer tempo e pode até parecer uma cirurgia de emergência. O ponto de partida é a limpeza geral e, depois, o restauro. No lugar do bisturi, o pincel. Ao invés de médicos, os restauradores. O ano começou tumultuado para esses profissionais, que assistiram à destruição de obras de arte, patrimônios arquitetônicos, mobiliários e objetos históricos durante os ataques terroristas do último domingo na Praça dos Três Poderes, em Brasília. A partir de agora, cabe aos museólogos e restauradores tentarem recuperar os tesouros que fazem parte do patrimônio do Brasil.Foram várias obras atacadas, como o painel As Mulatas (1962), de Di Cavalcanti (1897-1976), considerada a mais importante e de maior valor histórico, avaliada entre R$ 8 milhões e R$ 20 milhões, mas peças dessa magnitude costumam alcançar cifras até cinco vezes maior em leilões. Já o relógio Balthazar Martinot, presente da família real francesa e que chegou ao País em 1808, é um dos objetos que mais foram prejudicados durante os ataques. Com tamanha destruição, como essas relíquias memorialísticas poderão ser salvas?“No caso de vandalismo, intervenções cirúrgicas e mais profundas deverão ser ofertadas, com a aplicação de técnicas de consolidação que se relacionam com a onerosidade dos materiais trabalhados em cada obra”, explica a restauradora Cássia Reis, que já coordenou diversas obras de restauro em monumentos goianos que sofreram ataques de vândalos, como o Chafariz de Cauda da cidade de Goiás e o Arco do Cruzeiro da Igreja do Bonfim, em Pirenópolis.O trabalho do restaurador é amplo. Envolve conhecimentos multidisciplinares que englobam as vertentes das Artes, História, Química, Física e Ética. As disciplinas são combinadas essencialmente sob uma ótica afetiva e direta do bem, mescladas à uma sensibilidade fundamental que permite compreender o contexto e o objeto em si. “Transporta muita responsabilidade e respeito”, avalia Cássia.Cada obra ou peça tem sua singularidade e uma demanda a seguir. Antes da realização do restauro em si, por exemplo, é produzida uma análise particular, histórica, artística e visual do bem, com a elaboração de uma ficha técnica contendo todo o estudo, abarcando os testes dos produtos, como solventes, a serem aplicados. A pergunta que fica é: uma obra restaurada perde muito valor de mercado?Leia também:- Veja fotos e vídeos de atos golpistas em Brasília- Saiba os valores das obras de arte danificadas em ataque bolsonarista em Brasília“Tudo dependerá muito da intervenção realizada, ao passo que uma restauração bem feita com materiais adequados e técnicas certeiras, pode vir a aumentar, acrescer o valor de mercado”, destaca a restauradora. O que pode representar um alívio para os fãs da obra de Di Cavalcanti. O valor de mercado também depende, de acordo com Cássia, do estado de conservação em que a peça se encontrava anteriormente, visto que os danos, sejam eles acometidos por agentes biológicos em consequência do tempo ou por vandalismo, podem contribuir para o declínio do valor.Uma das últimas obras restauradas em Goiânia foi o monumento A Todos Nós, de Siron Franco, instalado na Praça Cívica, alvo frequente de pichações. Em protesto, o próprio artista cobriu a obra com lona preta em outubro de 2022. A Secretaria Municipal de Cultura (Secult Goiânia) recuperou a instalação, com uma limpeza profunda em toda a obra e seu entorno.“Nós conseguimos fazer a manutenção do monumento, como a limpeza das pichações. Entramos em contato com a Guarda Municipal e a Polícia Militar para reforçar a segurança no local”, explica o secretário de Cultura, Zander Fábio. A obra, que foi instalada em 2015 durante a recuperação e revitalização da Praça Cívica, custou R$ 500 mil e possui 15 metros de comprimento e 3 metros de altura.Não é a primeira vez que Siron vê obras de sua autoria serem vandalizadas. Em 2013, por exemplo, um painel instalado num paredão próximo ao Dique do Tororó, em Salvador, teve roubada a última de suas 450 peças. A instalação, que reproduzia em alumínio fundido pinturas rupestres, foi um presente do artista ao aniversário de 454 anos da capital baiana.“É uma violência contra o patrimônio público. Eu acho triste, porque é algo feito pela moçada nova. Que geração é essa?”, indaga Siron Franco, que também viu o Monumento às Nações Indígenas, em 1992, ser destruído em Aparecida de Goiânia. O lugar hoje está abandonado, quase todas as peças foram roubadas e quebradas.RegulamentaçãoCom tamanha importância para o patrimônio histórico, a profissão do restaurador não é regulamentada no Brasil, o que significa que não existe uma legislação que defina quais são as atividades exclusivas desse profissional. “É por este motivo que não há um curso de graduação específico para a sua atuação. Contudo, em geral, quem trabalha nessa área tem a formação em cursos como artes plásticas, arquitetura e urbanismo e museologia, e pós-graduação em conservação e restauro”, explica a arquiteta Ana Renata Santos, do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).Relíquia perdidaQuem passa pelos escombros do antigo prédio que já abrigou a Companhia Energética de Goiás (Celg) e a Secretaria Estadual de Educação, na Av. Anhanguera, nem imagina que ali abriga uma das obras mais valiosas de frei Nazareno Confaloni (1917-1977). Ou abrigava. Em fevereiro de 2020, o afresco de 9 metros de largura por quase 3 metros de altura foi coberto de tinta e causou comoção no meio artístico.Passados três anos, o que restou do painel continua lá. Segundo a Comissão Frei Confaloni, coordenada pelo pesquisador, produtor e biógrafo do artista, PX Silveira, o afresco é irrecuperável pelas técnicas atuais de restauração. Uma das opções sugeridas é a remoção, estabilização e embalagem, para deixá-lo em estado de criogenia no Museu Histórico Dominicano Frei Nazareno Confaloni, que está em implementação no Santuário do Rosário, na cidade de Goiás.“O painel ficaria na esperança de que futuramente, talvez em poucas décadas, tenhamos a tecnologia necessária para sua recuperação”, reitera PX Silveira, que ressalta que o trabalho valeria não menos que R$ 2 milhões. É importante ressaltar, segundo o pesquisador, que restaurar não é o mesmo que “reconstituir”. “O restauro é uma ciência que restabelece e faz aparecer os traços originais, respeitando-os, e não uma feitura por cima de uma obra que acaba sendo outra, dando margens a resultados às vezes até cômicos”, diz. Outros painéis de Confaloni que haviam sofrido vandalismos, ambos na Antiga Estação Ferroviária, no Centro, passaram por restaurações profundas em 2019 junto com a revitalização de todo o prédio histórico e agora podem ser apreciados pelo público. As obras homenageiam os trabalhadores que ajudaram a erguer Goiânia.Arte no meio do caminhoEm julho do ano passado, a artista curitibana Bruna Alcântara desabafou nas redes sociais após ver uma obra sua sofrer vandalismo em Goiânia. A convite do Lambes Góia - Festival Internacional de Lambe-Lambe, a artista criou um painel no entroncamento entre a Rua 9 com a Av. Tocantins, no Centro, com uma imagem sua amamentando o filho no colo. "Em menos de 12 horas tiraram apenas o bordado que representava minha vagina", afirmou. Foi a primeira vez que ela obteve resposta negativa e violenta da obra. A artista já expôs o mesmo trabalho em países como Portugal e também em outras capitais brasileiras, a exemplo de Curitiba e São Paulo. -Imagem (1.2593988)