Sentado no meio fio da esquina entre as Ruas Divinópolis e Paraisópolis, em Belo Horizonte, um jovem, menor de idade, dedilhava um violão. Salomão Borges Filho gostava de ficar por ali, vendo o movimento e criando. De repente, um rapaz negro, não muito mais velho, chegou e perguntou: “O que você está fazendo aí, Lô?”, chamando o rapaz pelo apelido com que era conhecido. “Estou fazendo música”, foi a resposta. “Então vamos fazer isso na sua casa.” E lá foram eles, Lô e Milton, para a residência dos Borges. A eles se juntou depois o irmão de Lô, Márcio Borges. Nascia ali o que o Brasil conheceria como Clube da Esquina.Meio século se passou e as canções surgidas daquele projeto de um grupo mágico de mineiros tornaram-se antológicas. O álbum duplo, gravado em apenas dois canais e lançado em março de 1972, é, certamente, um dos mais importantes da MPB. Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes, Toninho Horta, Márcio Borges, Ronaldo Bastos, Fernando Brant e Wagner Tiso compuseram 20 das 21 músicas – a exceção é uma de Ayrton Amorim e Mansueto. Compuseram, cantaram e fizeram os arranjos, em uma força-tarefa que não se deu acidentalmente. Tudo foi planejado por Milton, chamado no grupo de Bituca.A ideia do álbum foi do cantor e compositor nascido em Três Pontas, interior mineiro, e que desde cedo chamou a atenção por sua voz que parecia vir dos anjos. Milton reuniu os parceiros de outras jornadas, entre as quais os bailes em que atuou como crooner nas noites de Minas Gerais e em festivais da canção, para algo que, ele previa, consolidaria a carreira de todos os envolvidos. Se aqueles nomes eram conhecidos no cenário mineiro, Milton já estava na fase de fazer sucesso em todo o Brasil. Foi esse prestígio que usou para capitanear o projeto do Clube da Esquina, provocando as condições para que pudessem criar.Ele alugou uma casa em um lugar conhecido como Mar Azul, na Praia de Piratininga, perto de Niterói, e ali ensaiaram, lapidaram e mesmo compuseram canções como O Trem Azul, Cravo e Canela, Clube da Esquina Nº 2, Paisagem da Janela, Nada Será como Antes e Um Girassol da Cor do Seu Cabelo, entre outras. Também foram gravadas duas obras em espanhol, San Vicente e Dos Cruces, o que, na opinião de Milton, ajudou a levar sua voz para toda a América Latina. Para essa reunião de talentos, Bituca foi até a casa dos mais jovens convencer os pais a deixá-los ir para o Rio de Janeiro naquela aventura.No documentário Sobre Amigos e Canções, das diretoras Bel Mercês e Letícia Gimenez, Lô Borges admitiu que se mudou para o Rio contra a vontade da família em razão de sua pouca idade. Já os pais de Beto Guedes entregaram o filho nas mãos de Milton e pediram para que tomasse cuidado com ele. “O Beto é muito distraído”, teriam dito. Não era a primeira vez que o grupo se reunia e a amizade entre eles não era recente. Ainda na primeira metade dos anos 1960, eles compartilhavam suas primeiras experiências musicais, formando conjuntos, passando apuros, um instigando o outro a revelar seus talentos.Nesse documentário, por exemplo, Lô Borges relata que na primeira vez que ouviu a voz de Milton Nascimento, ele descia, ainda moleque, em 1964, as escadarias do Edifício Levy, em Belo Horizonte. Sua família ocupava a cobertura, no 17º andar. Milton era locatário de um apartamento no 5º pavimento. “Fui comprar pão e desci correndo pelas escadas. De repente, comecei a ouvir uma voz e um violão. À medida que eu ia descendo, a música ficava mais nítida. Quando cheguei no andar, lá estava o Milton.” Nunca mais se separaram, nunca mais dissociaram a carreira deles com os de outros amigos. É uma jornada coletiva.“A música precisa estar cercada de um valor maior que é a amizade”, repete Milton Nascimento sempre que pode em suas entrevistas. Não é mero discurso; é prática, desde os tempos em que mal havia deixado a adolescência. Seu primeiro companheiro do pessoal do Clube da Esquina foi o futuro maestro Wagner Tiso, cuja família era ligada à música. Foi com o amigo ao piano que formaram grupos como Sambacana e Ws Boys. Também houve o Berimbau Trio, formado por Bituca, Tiso e Paulinho Braga. Nessa época, está a gênese autobiográfica de Nos Bailes da Vida, “quando muita gente pôs o pé na profissão”.Os pais daqueles jovens – alguns ainda meninos, na verdade – abriam suas casas para que pudessem se reunir, ensaiar, sem se importarem com as longas jornadas regadas a música. A primeira pessoa a ouvir Clube da Esquina Nº 1, por exemplo, foi a mãe de Lô e Márcio Borges. Eles ajudaram alguns deles a ir para o Rio de Janeiro em 1967 para participarem do 2º Festival Internacional da Canção, promovido pela TV Globo, no Maracanãzinho, quando Travessia, parceria inaugural de Milton Nascimento e Fernando Brandt, ficou em segundo lugar. O álbum Clube da Esquina, portanto, já vinha sendo gestado há algum tempo.Uma capa icônica, um tempo turbulentoQuando tirou a foto que iria ser uma das mais conhecidas da música brasileira, Cafi, um pernambucano que aportou nas Minas Gerais, não poderia imaginar que aquele instante despretensioso seria capa de um disco antológico. Sentados na beira de uma estrada de chão, atrás de uma cerca de arame farpado, na zona rural mineira, dois garotos olham curiosos para a lente. Os meninos, um negro com semblante fechado e um branco que ensaia um sorriso maroto, chegaram a ser associados a dois dos principais nomes daquele trabalho, Milton Nascimento e Lô Borges. Era mais uma lenda a cercar o disco.A escolha da imagem foi de Milton, que viu ali uma singeleza que lhe agradou. Além disso, o álbum é, de acordo com os compositores das canções, uma junção entre elementos universais e regionais. Se há a nítida influência do rock dos Beatles em composições, sobretudo de Lô Borges e Beto Guedes, há o sertão do interior brasileiro, com as sonoridades de cantorias e temáticas que remetem a cenas mais bucólicas. Os meninos da estrada traziam essa iconografia mais ligada à terra. A foto, tirada de dentro de um carro, na verdade reúne José Antônio Rimes e Antônio Carlos Rosa de Oliveira, o Tonho e o Cacau.O que veio depois não é tão poético. Em 2012, os dois entraram na Justiça pedindo uma indenização de Milton Nascimento, Lô Borges, da gravadora original do álbum, a EMI, e do selo que o relançou, a Abril (hoje, Universal), por danos morais e uso indevido da imagem. O processo foi aberto depois que uma reportagem do jornal O Estado de Minas conseguiu descobrir e localizar a dupla, que até então, 40 anos depois do lançamento do trabalho, não sabia que estampava a capa do disco. O caso ainda tramita, mas as chances de Tonho e Cacau receberem os R$ 500 mil que pedem parece pequena em razão do tempo decorrido.Se O Clube da Esquina enfrenta esse tipo de polêmica agora, o trabalho teve problemas mais tensos ao ser lançado. Em 1972, o Brasil vivia o auge da repressão da ditadura militar, com o governo Médici exercendo o poder com mão de ferro. Aquele grupo não era bem visto, já que vários de seus membros tinham um perfil que desagradava o governo. Márcio Borges, por exemplo, era do movimento estudantil. Milton Nascimento fazia sucesso entre os universitários. Versos como os de Paisagem da Janela – “quando eu falava dessas cores mórbidas, quando eu falava desses homens sórdidos” – não passavam despercebidos.E tudo começou em 1964, tanto o golpe, quanto os primeiros contatos daqueles rapazes que revolucionaram a nossa música. Lô Borges lançaria naquele mesmo 1972 seu disco solo de estreia. Milton Nascimento, que já havia gravado quatro álbuns, teve no Clube da Esquina um divisor de águas. No ano seguinte, fez outro trabalho marcante, O Milagre dos Peixes. Em 1973, Beto Guedes lançou um álbum com Toninho Horta, Novelli e Danilo Caymmi. Wagner Tiso, com sua formação versátil, que vai da música clássica ao jazz, tornou-se um dos mais prestigiados diretores musicais do País. Que esquina boa aquela!Um ano de clássicosEm 1972, justamente quando o Brasil atravessava um de seus momentos mais sombrios, com as artes sob ataque da ditadura militar brasileira, discos antológicos chegaram ao mercado, trazendo novas referências, artistas e ritmos. Um dos trabalhos emblemáticos é o álbum Acabou Chorare, do grupo Novos Baianos. A criatividade, irreverência e, sobretudo, liberdade que este projeto significa fizeram de Moraes Moreira, Baby Consuelo, Pepeu Gomes, Paulinho Boca de Cantor e Luiz Galvão alguns dos criadores mais relevantes de sua geração, que tinha pés em vários estilos, da cultura hippie ao melhor do samba.O disco é composto, quase inteiro, por canções que são entoadas ainda hoje, 50 anos depois. A começar pela música que dá nome ao disco, composição de Moraes Moreira, que altera os rumos que o próprio grupo começava a trilhar com um trabalho anterior, É Ferro Na Boneca, de 1970. Vindos da Bahia, eles se instalaram no Rio de Janeiro numa espécie de alojamento, onde receberam, entre outros, João Gilberto. Um dos pais da Bossa Nova foi fundamental nos destinos dos Novos Baianos. Esse momento virou até livro, o volume de contos A Visita de João Gilberto aos Novos Baianos, de Sérgio Rodrigues.João Gilberto desafiou aqueles jovens a fazerem algo realmente original, inspirando, por exemplo, Moraes Moreira, com um violão que se aproxima daquele tocado pelo mestre, a criar uma música bela, singela e magistral sobre como Bebel Gilberto, filha de João e Miúcha, ainda bem criança, falava quando parava de chorar ao se machucar. Também estão no disco as contagiantes A Menina Dança, Preta Pretinha e Besta É Tu, além da releitura de um samba clássico, Brasil Pandeiro, composto por Assis Valente para que fosse interpretado, ainda em 1940, por Carmen Miranda, o que ela se recusou a fazer.Outro álbum histórico lançado em 1972 foi Expresso 2222, de Gilberto Gil. Era a sua volta do exílio, ao qual tinha sido condenado junto com Caetano Veloso, e oferece uma visão do futuro, como afirma a música-título, que prevê um trem que parte da Central do Brasil “pra depois do ano 2000”. Também está no álbum a icônica Back In Bahia, com marcas de um rock inglês nos arranjos e instrumentos. O trabalho traz, num diálogo interessante com Jackson do Pandeiro, a releitura de Chiclete com Banana e um trecho de O Canto da Ema, além de uma parceria com Caetano, Ele e Eu e o forró eletrificado Sai do Sereno.Sentada numa cadeira no jardim e com semblante feliz, Elis Regina também apresentava novidades em 1972. O álbum daquele ano que leva seu nome é uma reunião rara de músicas marcantes. Nele, uma das maiores cantoras do País mostra performances que seriam inesquecíveis, como em Atrás da Porta, de Chico Buarque e Francis Hime; Bala com Bala, de João Bosco e Aldir Blanc; Mucuripe, de Belchior e Fagner; Casa no Campo, de Tavito e Zé Rodrix; Nada Será como Antes e Cais, da dupla Milton Nascimento e Ronaldo Bastos; e Águas de Março, de Tom Jobim. Poucos discos tiveram tanto peso assim.Como se tudo isso não bastasse, um outro álbum, com Maria Bethânia, Nara Leão e Chico Buarque na capa, risonhos e vestidos a caráter, trazia a trilha sonora do filme Quando o Carnaval Chegar, de Cacá Diegues, no qual essa trinca de ases se aventurou na arte da dramaturgia. Uma grande brincadeira entre amigos, uma festa entre pessoas queridas, o filme selecionou a dedo suas canções, com direito a Partido Alto, com MPB4, Formosa, entoada no dueto entre Nara e Bethânia, e a canção que dava título ao projeto, com as três vozes juntas. Um respiro de alegria em pleno período dos anos de chumbo.UM ANO PRÓDIGOMais álbuns que foram lançados em 1972. Veja que lista seleta, em variados estilos.Dança da Solidão (Paulinho da Viola) – O príncipe do samba entoava o clássico que dá nome ao álbum, além de outras canções fundamentais em sua carreira, como a parceria com Capinan em Coração Imprudente. Também há músicas de Cartola e Monarco.A Mais Jovem Dupla do Brasil (Chitãozinho e Xororó) – O visual dos cantores sertanejos não ajudava na foto da capa do disco, mas a dupla buscava sucesso em canções do interior, como Vai Caindo Uma Lágrima, Belezas do Araguaia e Nostalgia Cabocla.Drama, Anjo Exterminado (Maria Bethânia) – Produzido por Caetano Veloso, neste disco Bethânia reúne canções fortes de sua carreira, como Estácio Holly Estácio, de Luiz Melodia, Volta Por Cima, de Paulo Vanzolini, e Iansã, de Caetano e Gilberto Gil.Elza Pede Passagem (Elza Soares) – Com visual no melhor estilo black power, Elza Soares revelava sua potência, interpretando canções de um grupo de compositores que incluía Vinicius de Moraes, Toquinho, Jorge Ben Jor, Gonzaguinha, João Nogueira e Billy Blanco.Tim Maia (Tim Maia) – Um de seus melhores trabalhos, neste disco Tim Maia mostra as razões pelas quais soube também fazer pontes entre ritmos, com composições em português e inglês. Nele estão músicas como Canário do Reino e Pelo Amor de Deus.