O lançamento do terceiro volume da trilogia Escravidão é um marco para seu autor, o jornalista Laurentino Gomes. “Meu sonho era esse projeto. É a obra mais importante que eu já fiz”, avalia. Três obras que investigam e revelam como o Brasil tornou-se o maior território escravocrata do hemisfério ocidental, porque houve tanta demora em abolir o regime de cativeiro por aqui e como essa herança de violência repercute ainda hoje na forma de um racismo estrutural que continua a excluir, ofender e matar. O escritor estará em Goiânia autografando o livro no dia 20 e nessa entrevista exclusiva ao POPULAR, ele fala como o regime escravagista explica nossas mazelas, destrincha o papel das elites e da realeza nessa mácula e salienta a importância de se discutir a discriminação no Brasil.Qual a sensação de completar mais esse ciclo? Você já havia produzido a trilogia das datas nacionais (1808, 1822 e 1889) e agora finaliza a trilogia da Escravidão.Completar essa jornada de três livros, quase 1.500 páginas escritas, uma bibliografia enorme (acho que li quase 300 livros em mais de dez anos) é para mim um grande alívio. Eu me sinto tranquilo, recompensado por ter chegado ao final da jornada. O tema é político, muito sensível, muito polêmico. Ele está na agenda todos os dias nesse início do século 21, ainda mais às vésperas de uma campanha eleitoral para presidente da República. Eu acho que o livro chega em boa hora. A acolhida que eu tenho observado é muito grande. Desde que eu lancei o primeiro volume em 2019 até agora, tem crescido o interesse pelo tema. O que eu realmente almejava com essa trilogia, eu atingi. Você ganhar Prêmio Jabuti, vender livros é muito divertido, importante, mas o que conta mesmo é você ajudar a fazer uma reflexão sobre o Brasil, ajudar a formar cidadania. Quando observo que as pessoas reagem e isso provoca discussões, reflexões, tenho a impressão de que meu trabalho atingiu o objetivo. Você disse que começou esse projeto dez anos atrás. Lá atrás, imagino que você não poderia prever o quanto esse tema do racismo estrutural estaria em evidência em 2022. Como você observa esse fenômeno hoje?O racismo, a intolerância, as mazelas brasileiras que são legados da escravidão – e a maior delas é a desigualdade social – sempre estiveram presentes. Mas elas foram mascaradas, camufladas durante regimes autoritários que tentavam impor uma visão menos conflituosa da identidade brasileira. Como se nós tivéssemos tido uma escravidão branda, boazinha, e o resultado fosse uma grande democracia racial. Este é um grande mito, uma mentira, um autoengano. Isso foi muito forte porque o Brasil vivia sob regimes autoritários em que sequer a discussão era permitida. Agora, que vivemos numa democracia, fica-se com a impressão que agora que o Brasil começou a ter racismo, o que também é um engano. Ele já existia pior do que agora, mas que está vindo à tona. Porque as pessoas estão se manifestando, inclusive as vítimas do racismo, a população negra, que no passado tinha pouquíssima oportunidade de se manifestar.Esse assunto tem sido muito debatido nas escolas, nas empresas, em todos os ambientes. Há uma preocupação legítima com a questão da diversidade, do racismo, da intolerância e da correção de passivos acumulados. O que existe hoje é uma reflexão pública e às vezes radicalizada, polarizada, e não há nada de errado nisso. Na democracia é assim mesmo e não podemos nos assustar com o calor da discussão. Isso provoca um incômodo, geralmente na população branca. Embora possa existir um desconforto nessas discussões e nas denúncias de mortes, de abusos, de casos explícitos de racismo todos os dias, isso vai nos levar a um novo patamar de consciência a respeito do que nós somos. Isso é muito benéfico para a democracia, é assim mesmo que a construímos.Quando ficávamos com a imagem de que vivíamos numa democracia racial, era muito difícil aplicar políticas públicas para corrigir o legado da escravidão. Quando chegamos à conclusão que o Brasil tem um problema sério, é diferente. A segunda Abolição, preconizada pelos abolicionistas de 1888, nunca aconteceu. O Brasil nunca distribuiu renda, nunca fez reforma agrária, nunca proporcionou educação, moradia, saúde a sua população descendente de escravos. Eu insisto que a escravidão não é um assunto do passado, mas um assunto do futuro do Brasil. Estudar a escravidão ajuda a tomar decisões melhores, mais adequadas, mais amadurecidas. Neste terceiro volume, você aborda a escravidão da Independência à Lei Áurea, contemplando quase todo o período da monarquia brasileira. Sempre lemos que D. Pedro I dizia que a escravidão era uma chaga, que D. Pedro II dizia que a escravidão tinha que acabar, mas por que se demorou tanto a aboli-la?A resposta é muito simples: a monarquia brasileira era um gigante com pés de barro e os pés de barro eram a escravidão. Não há dúvidas de que D. Pedro I, D. Pedro II, a Princesa Isabel, o marido dela, o Conde d´Eu, tinham um desejo abolicionista. Eles achavam mesmo que o Brasil não poderia ir para frente se continuasse a ser o principal território escravista do hemisfério ocidental, como o foi durante 350 anos. O problema é que o Império brasileiro era sustentado pela aristocracia rural escravista. Eram eles, os coronéis, os fazendeiros, os senhores de engenho, mineradores de ouro e diamantes, charqueadores, os pecuaristas, os comerciantes, os traficantes de escravos que apoiavam a monarquia. Os salões da nobreza no Rio de Janeiro, em Petrópolis eram frequentados por senhores de escravos, eles que mandavam no Brasil de fato. Eles apoiavam o Império, participavam da vida política nos dois grandes partidos, o Conservador e o Liberal, e o Império, em troca, os recompensava com títulos de nobreza. Barões, viscondes, duques, fidalgos, cavaleiros da Ordem de Cristo, capitães das Armas do Império, a imensa maioria deles era de senhores de escravos ou envolvidos diretamente com o tráfico, inclusive após ele ser proibido a partir de 1831. O Império brasileiro era refém da escravidão, apesar do desejo declarado dos soberanos de que o Brasil deveria ser um País livre. Não por acaso, apenas um ano após a Abolição veio a República, porque o gigante desabou, o edifício implodiu. Os fazendeiros que queriam uma indenização pela Abolição – essa era uma reivindicação e votaram contra a Lei Áurea principalmente por esse motivo – se sentiram traídos e migraram para a campanha republicana. A quantidade de nobres e fazendeiros que aderiram à campanha republicana após a Lei Áurea é uma coisa escandalosa, constrangedora. E não por acaso, essa República passa a ser governada também pelos fazendeiros, na política do café com leite que durou pelo menos até a Revolução de 30. Essa mesma elite que mandava no Império e impediu o fim da escravidão – o Brasil foi o último país das Américas a declarar a Abolição – passou a mandar na República e as bases de exclusão continuaram as mesmas. As pessoas não tiveram a oportunidade de ser educadas, escolarizadas. O Brasil não promoveu cidadania, as estruturas vigentes continuaram sendo as do século 18. Eu diria que os resquícios continuam até hoje. Há um Brasilzão que ainda tem muito do século 18. Inclusive com as mesmas elites, né?Exatamente. E com o mesmo discurso, um discurso escravocrata.Quando a gente lê seus livros, temos algumas decepções com várias pessoas que aparecem neles. Você se depara com a informação de que determinada figura era senhor de escravo, por exemplo. Eu me choquei com o escritor José de Alencar.Eu também. O grande autor de Iracema era escravocrata.Como você vê as dicotomias dessas pessoas em relação à escravidão?No final das contas, ninguém sai muito bem dessa história, com algumas exceções. Um personagem como Luís Gama [advogado negro e abolicionista do século 19], ao contrário, vai ficando cada vez maior à medida que o observamos. Mas outros, não. Estamos tratando de pessoas que, como nós hoje, são cheias de contradição, de dúvidas do que fazer. Há o contexto histórico delas. Quando você pega D. Pedro II e o observa sob a perspectiva da escravidão, ele fica um personagem muito frágil, que não tomou as decisões corajosas que o Brasil exigia no nomento adequado. Apesar de sua fachada de um homem bem educado, culto, amante das ciências, da Filosofia, ele, no fundo, governou um país escravocrata por 50 anos e não fez muito para mudar isso. Agora, é preciso olhar o contexto da época. O Brasil era escravocrata, a mentalidade escravista estava profundamente enfronhada na maneira de o Brasil se comportar, funcionar, e as pessoas agiam dentro desse ambiente. Hoje é muito fácil fazer um julgamento sumário. Mas eu acho que há certas contradições que são insolúveis. A Igreja ter apoiado a escravidão até as vésperas da Lei Áurea, por exemplo, é uma contradição insolúvel.Você mencionou D. Pedro II e sempre é lembrada a questão de que ele evitou assinar de próprio punho a Lei Áurea.Este é um aspecto bem interessante da história da Abolição. Nos momentos cruciais, D. Pedro II não estava presente. Na assinatura da Lei do Ventre Livre, ele estava viajando e quem assinou foi a Princesa Isabel. E depois na Lei Áurea ocorreu o mesmo. A desculpa oficial é de que ele estava doente. Ele sofria de diabetes, estava precocemente envelhecido. Realmente estava muito frágil. Mas existe a hipótese de que ele ficava ausente nesses momentos cruciais justamente para fortalecer a filha. Havia um problema de gênero na sucessão do trono. O Brasil, um país patriarcal, machista, misógino, reagia à ideia de ter uma mulher no trono. Ela era muito carola, a maçonaria estava em confronto com a princesa. Sair de cena e deixar que ela assumisse o protagonismo em momentos tão importantes como esses era uma forma de dizer: “Olha, aqui há uma soberana, uma mulher que sabe governar, que sabe tomar decisões corajosas”. O fato é que não deu certo, a monarquia caiu no ano seguinte e D. Pedro II morreria logo em seguida.Gostaria que você falasse um pouco da escravidão em Goiás. Ainda que tenha recebido muitos escravos por conta da exploração do ouro, o Estado praticamente apagou essa memória dos negros. Há as comunidades quilombolas, claro, mas uma cidade como antiga capital, só agora volta a resgatar essa memória dos escravos. Ao mesmo tempo, Goiás tem a tradição de ser governada por elites agrárias. Como você vê as conexões entre as duas questões?Goiás é um exemplo, uma vitrine do que de fato aconteceu no Brasil todo. A escravidão foi muito importante em Goiás no ciclo do ouro e do diamente, como descrevo no segundo volume da trilogia. Essa ocupação do Centro-Oeste brasileiro foi acompanhada pela escravidão. Esse processo de apagamento da memória é nacional, com poucas exceções, como a Bahia, onde a cultura negra é muito valorizada e celebrada. No restante do Brasil, houve um branqueamento da memória nacional, com essa ideia de que os escravos, os negros foram personagens coadjuvantes e que os protagonistas são brancos. Isso marca profundamente a historiografia brasileira, a forma de observar o Brasil. Não é por acaso que o Brasil, maior território escravista da América, até hoje não tem um grande museu nacional da escravidão. O Brasil tem Museu do Amanhã, Museu da Língua Portuguesa, Museu da Imagem e do Som, mas não um Museu da Escravidão, que deveria estar lá no meio da Esplanada dos Ministérios, como o que Barack Obama inaugurou no Mall, em Washington, no Smithsonian, que é o Museu da Cultura e da História Afro-Americana. Museu não é um lugar aonde você vai apenas para diversão. É um lugar de reflexão. Não ter um museu é uma forma de não refletir. Isso acontece em Goiás e no restante do Brasil também. Mas essa África brasileira não vai embora. Durante o século 19, e isso eu trato no terceiro volume, houve um esforço de tentar desaparecer com os negros no Brasil. Discutia-se isso publicamente no Parlamento, na imprensa. Havia propostas de devolvê-los para a África ou de criar colônias no interior do País em regiões remotas, como se fossem guetos, campos de concentração. A África está presente e reivindicando seu espaço cada vez mais. Ela vai sempre voltar à tona, não se pode apagá-la totalmente porque ela está no olhar, na expressão, no dia-a-dia das pessoas e ela tem que ser recuperada em algum momentoSERVIÇOLivro: Escravidão (Vol. 3): Da Independência à Lei ÁureaAutor: Laurentino GomesPáginas: 592Editora: Globo Livros -Imagem (Image_1.2487598)-Imagem (Image_1.2487602)-Imagem (Image_1.2487599)-Imagem (Image_1.2487601)-Imagem (Image_1.2487600)